Como previsível a comemoração dos 100 anos da revolução russa reuniu o melhor e o pior, o biscoito fino e o lixo, da análise política e da teoria social. Centenas de debates, mesas redondas, colóquios, publicações, etc., demonstra que a revolução permanece um acontecimento vivo e interpelando o tempo presente de nossas vidas. Desta maneira, antes de tudo, dado o impacto numérico das comemorações, é importante observar - para além da qualidade e do mérito das contribuições - que fazer o balanço vertical da revolução trata-se de uma matéria histórica fundamental.
Comemorar 1917 em 2017 inevitavelmente condensa as marcas de nosso tempo. A propósito estamos a lembrar do ensaio “Ecos da Marselhesa”, de Eric Hobsbawm, sobre a comemoração dos 200 anos da revolução francesa de 1789. Recorda Hobsbawm que, passado os anos, cada efeméride é comemorada de sua maneira. Ou seja, comemorar a revolução é também dela se aproximar.
No alvorecer do século XX a instauração do regime dos sovietes na velha Rússia czarista era um acontecimento inaugural. Mas não a única novidade societária do século XX. Fascismo e nazismo, pouco adiante, também constituíram respostas à crise do capitalismo e do Estado liberal. Nos dias de hoje, novamente o espectro de regimes de extrema direita rondam o mundo, enquanto a esquerda tateia os primeiros tímidos passos na direção de uma ofensiva política que continua a tardar.
Gostaríamos, neste ínterim, de intrometer o veredicto de Gramsci a propósito dos novos regimes societários do século XX. Conforme o pensador comunista italiano, apesar de todo estrago e desgraça produzidos, nem fascismo, nem nazismo, eram respostas consistentes de longo prazo à crise do Estado liberal clássico e da economia capitalista. Ele os considerava “desenvolvimentos intermediários” que logo mostraria as suas fragilidades, pois eram mais representantes da velha Europa “improdutiva” e pequeno-burguesa. Parafraseando livremente uma passagem brilhante de Ernest Mandel em “O capitalismo tardio”, de análise da economia política do nazismo, cedo ou tarde - até mesmo se fosse vencedor da guerra - os nazistas teriam de fazer a sua perestroika.
Gramsci, que morreu em 1937, previu genialmente o desfecho da Segunda Guerra. Para ele, o futuro do mundo, os dois desenvolvimentos antagônicos, germinariam fora da velha Europa Ocidental. Esses dois desenvolvimentos antagônicos eram o americanismo/fordismo e o regime dos sovietes. Não chegava a ser um veredicto inédito. De alguma maneira, uma parte da inteligência européia, já no desfecho da Primeira Guerra, olhava para os Estados Unidos e a União Soviética. Acompanhando esta intelectualidade, ainda muito jovem, em 1918, Gramsci dizia o seguinte: “na conflagração de idéias provocada pela guerra, duas novas forças emergiram: o presidente americano Wilson e os maximalistas russos. Eles representam os extremos de uma corrente lógica das ideologias burguesas e proletárias”.
Mais tarde, quando da redação dos “Cadernos do Cárcere” o veredicto juvenil e impressionista vai se sofisticar numa visada estratégica universal, tendo em conta as relações de força (internacionais e internas). Entra em causa a questão da hegemonia.
A revolução russa para Gramsci esteve longe de constituir um mar de rosas. No começo da década de 1930 ele percebia que o regime soviético ( para ele, único contendor real a longo prazo do ethos fordista na disputa mundial de hegemonia) começava a perder potencialidades hegemônicas internacionais. Passada a euforia inicial da tomada e conquista do poder política na Rússia - origem do impulso internacional de expansão da revolução - em virtude da natureza de comando autocrático, as potencialidades hegemônicas da revolução na Europa começaram a se estiolar.
O marco de influência direta mais remoto da análise gramsciana sobre as questões da hegemonia na URSS foi o processo de alteração estratégica configurado no III Congresso da Internacional Comunista (1921), quando se verificou que a vaga revolucionária de 1918-1920 tinha cessado na Europa.
Daí em diante, não sem a presença de vacilações de "esquerda", os comunistas deveriam propor aos sindicatos e até partidos aos social-democratas, pela base, uma ação comum, que poderia desembocar até em um acordo de apoio a um eventual governo social-democrata, do qual os comunistas não participariam, mas poderiam dar apoio, desde que a social-democracia se comprometesse com um programa radical de reformas econômicas e sociais, envolvendo inclusive as formas de propriedade; vale dizer, um programa no rumo do socialismo, em perspectiva de longo prazo. Desse modo, o programa originário bolchevique – conquista imediata do poder e implantação de uma ditadura do proletariado na Europa –, foi suavizado. Na vigência da política de frente única, o eixo do poder político comunista – a ditadura do proletariado –, não foi abandonado, em ideário, mas poder-se-ia passar, doravante, por uma série de etapas intermediárias e governos transitórios.
O programa de frente única refletiu certo recuo estratégico da IC, tendo em vista as expectativas (não realizadas) de conflagração revolucionária do front ocidental, nos anos de 1917-1921. Escreve Hobsbawm sobre as enormes expectativas bolcheviques de um turbilhão revolucionário envolver a Europa Ocidental naqueles primeiros anos de poder proletário, na Rússia: “o movimento comunista internacional foi fundado na suposição de que uma revolução mundial, ou ao menos uma revolução em importantes regiões do mundo, não só era viável, como iminente”. A revolução faltou momentaneamente ao encontro, e conforme lembrou Radek, numa visada realista, “num período em que não há revoltas populares é particularmente difícil dedicar-se a um programa político comunista”.
As datas não são fortuitas. Em 1921, também foi lançada em território soviético a chamada Nova Política Econômica (NEP), anunciada como uma reversão da política econômica vigente entre os anos de 1919-1921, conhecida como “Comunismo de Guerra” (uma política de requisição forçada da produção camponesa e absoluto controle estatal da atividade econômica). Pois bem, a NEP, no contrapelo do Comunismo de Guerra, promoveu a liberação da produção mercantil no campo e na cidade.
Frente única e NEP compõem, portanto, um bloco homogêneo de políticas, enlaces do “nacional” soviético e da conjuntura posta pelas relações internacionais, a última marcada especialmente por um momento de esvaziamento da maré montante revolucionária vigente no imediato fim da Primeira Guerra Mundial.
O problema que se apresentou ao movimento comunista em seus primeiros anos (1919-1921) não foi somente objetivo – o fim da maré montante revolucionária. Havia também problemas de ordem subjetiva: triunfalismo e erros analíticos na interpretação do conteúdo da crise por que o capitalismo passou no período entreguerras. Os erros analíticos não ocorreram somente nas franjas do movimento comunista – os imberbes comunistas de ultraesquerda europeus contrários à frente única –, mas no centro mesmo da elaboração teórico-política, até mesmo na interpretação canônica oferecida pelo principal dirigente e principal partido comunista mundial: Lênin e os bolcheviques.
Façamos justiça quanto ao papel histórico de Lênin. Elogiemos o visceral antidogmatismo de seu pensamento político, situado no veredicto genial da possibilidade de realizar a revolução socialista na periferia do sistema capitalista europeu – na Rússia czarista, o elo frágil, econômico e político, da cadeia imperialista européia –, saltando-se a etapa da revolução democrático-burguesa. A visada estratégica de Lênin contrariava a linha vigente em seu próprio partido, que prognosticou, anos a fio, a possibilidade de um poder democrático dos operários e camponeses na Revolução Burguesa russa, mas não o trasbordamento desta delimitação, ou seja, ousar começar o socialismo num país que não completou a Revolução Burguesa.
Observemos que a heresia não se tratava de uma mera intuição lenineana, mas continha um rigoroso aproveitamento político do estudo da lógica dialética hegeliana. Lênin rompeu praticamente com a tradição teórica escolástica e positivista “a II Internacional – alergicamente anti-hegeliana –, ao anunciar uma nova estratégia da revolução, acertando contas com elementos de sua tradição e formação intelectual pessoal. Esse rompimento não foi de somenos: nos marcos teórico da escolástica professada pela II Internacional – especialmente a canônica do papa Kaustky, que sobrelevava o evolucionismo darwninista e subestimava a dialética hegeliana –, a formulação estratégica de Lênin, vitoriosa na Revolução Russa, teria sido impossível em pensamento, e, portanto, como ação e vitória. Não apenas a realidade deve tender à revolução, mas também o pensamento, à tortuosa realidade da revolução.
Antes de Lênin e, por outras vias, Trotsky, num acerto de contas escrito pouco depois da Revolução Russa de 1905, intitulado Balanço e perspectivas (sd.), havia chegado ao mesmo plano estratégico (transformar a revolução democrático-burguesa em revolução proletária). Não era esse um veredicto estratégico qualquer, mas, munido dele, Trotsky batia de frente com o evolucionismo predominante na tradição da Segunda Internacional (a crença de só alcançar o socialismo depois de realizada uma revolução burguesa).
Gramsci, em famoso artigo juvenil (A revolução contra “O Capital”), publicado em 1918, percebeu logo cedo a genialidade política emersa dos bolcheviques e seu confronto com a escolástica vigente no movimento operário europeu. Conforme Gramsci (118), os fatos de outubro de 1917 “ (...) fizeram rebentar os esquemas teóricos de acordo com os quais a história da Rússia devia desenrolar-se segundo os cânones do materialismo histórico” – por “materialismo histórico” entenda-se, evidentemente, o marxismo da Segunda Internacional.
Depois do elogio, não devemos escamotear certos problemas na visada estratégica de Lênin, especialmente no exagero de certas tendências econômicas do capitalismo monopolista e imperialista, disso resultando que, acertado no plano interno da Revolução Russa, contudo, esse plano estratégico não se confirmou para o conjunto da Europa (principalmente a Alemanha).
Em outras palavras, a tomada de poder pelos bolcheviques não significou o prólogo da Revolução Socialista européia, mas a restrição da mesma ao antigo território do império czarista. Por que isso? Axial na determinação do elo frágil da cadeia do sistema imperialista (a Rússia), a teoria do imperialismo, de Lênin, como nova fase monopolista do capitalismo mostrou-se insuficiente na apreciação de certas questões da moderna economia capitalista, o que acarretou juízos apressados, demasiadamente otimistas, no plano da estratégia política.
O sistema capitalista parecia derreter na Primeira Guerra Mundial e na fase imediatamente posterior, mas, na realidade, era somente aparência. O grande problema teórico da démarche lenineana revelou-se na tensão entre o “parasitismo” do novo capitalismo e a possibilidade de sua “decomposição”; sem dúvida, o novo capitalismo, descrito por Lênin em Imperialismo, fase superior do capitalismo (1982: 579-671), era parasitário – o número de rentiers (os que vivem de rendas especulativas) aumentou, exponencialmente, a expensas da atividade produtiva; todavia, o crescimento do parasitismo no capitalismo – de per si –, não autorizava, como hoje sabe-se muito bem, a interpretação da iminência de uma rápida “decomposição”no capitalismo.
Certamente, esses problemas na apreciação lenineana do capitalismo monopolista tiveram incidência no florescimento de variadas tendências políticas simplificadoras do problema do poder político no capitalismo – teorias de uma catástrofe final do capitalismo e posterior assunção do socialismo –, e insuficiências na compreensão e aplicação da própria política da frente única.
Com fundamento no estudo de três acontecimentos históricos coligados, a NEP, a linha de frente única e a vitória do fascismo na Itália, mas não restrito aos mesmos, Gramsci passou a verificar os erros por excesso de otimismo na política do movimento comunista em seus primeiros anos (1919-1921). Daí ter chegado à conclusão de haver uma incompatibilidade entre a política de assalto direto ao poder de Estado – promovido pela III Internacional nos primeiros anos –, e o curso real do mundo capitalista ocidental na economia, na política e na cultura.
Assim sendo, de olho nos acontecimentos de 1921-1922 (fim da vaga revolucionária européia, frente única, NEP e fascismo no poder), Gramsci, no cárcere, privilegiado por alguns anos de distância e a reflexão de uma tormentosa derrota política, dimanaram duas conclusões que os principais sujeitos diretos desses processos recentes (os bolcheviques e demais partidos comunistas) vislumbraram, tangenciaram, mas não tiraram todas as ilações possíveis, a saber:
– Propôs um giro na estratégia do movimento comunista no ocidente, trocando a estratégia de guerra de movimento (uma frente ofensiva de curta duração contra as estruturas do Estado burguês) pela guerra de posição (uma política de largo escopo desatada em uma longa temporalidade histórica). Percebeu haver um elemento morfológico de separação entre as estruturas do Estado no ocidente (Europa Ocidental) e no oriente (Rússia e países asiáticos). O problema que se colocava, tornando a questão da revolução no ocidente mais complexa, era o de que o processo histórico nos moldes da Revolução Russa não se repetiria no ocidente – e não se repetiu até hoje. Assim sendo, no ocidente, os comunistas não se deparavam com um Estado que teria apenas de entrar em colapso para a classe trabalhadora chegar ao poder. O Estado era somente a primeira linha de defesa da burguesia. Por trás, dele havia todo um sistema de defesas e cidadelas – as instituições da sociedade civil que estabeleceram a legitimidade da dominação burguesa.
– Fez de 1921 (as datas não são fortuitas) o marco inaugural não só da necessidade de mudança da estratégia, mas também consorciou a nova estratégia ao conceito de revolução passiva. Numa comparação com o processo da Revolução Burguesa, no século XIX, afirma Gramsci: “na Europa de 1789 a 1870 houve uma guerra de movimento (política) na Revolução Francesa e uma longa guerra de posição de 1815 a 1870; na época atual, a guerra de movimento ocorreu de março de 1917 a março de 1921, sendo seguido por uma guerra de posição cujo representante, além de prático (para a Itália), ideológico (para a Europa) é o fascismo.
(O artigo continua, mas em publicação acadêmica no prelo)
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