segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Millôr Fernandes e o Significado da Vida


( ͡° ͜ʖ ͡°)

Oitenta e tantos anos. Morrendo. Não morrendo acabado, mas já mais tempo na cama, esperando apenas aquilo que os médicos, à falta de semântica mais precisa, chamam de ''falência múltipla dos órgãos''. Eis que entra no quarto um velho parente, quase tão velho quanto, senta-se lentamente numa cadeira junto à cama e, sem saber o que dizer, diz apenas: ''Pois é...'', frase pronunciada com o tom de finalidade inescapável que tem tantas vezes (''Não adianta mais nada'', ''Pra que lutar?'', ''Deixa pra lá'', ''Fudeu'' etc).

''O problema não é esse'', disse o deitado, o esse já se referindo, compreende-se, a fechar o paletó. ''O chato é que morro sem saber a coisa que sempre quis saber, que sempre busquei entender: o significado da vida.''

''Pena'', disse o sentado, ''você estar aí sem poder se levantar. Li nas minhas leituras teosóficas, coisa séria, que existe na Índia um monge, um lama, que descobriu isso.''


''Besteira! Já ouvi muita besteira igual! Não acredito.''



Mas acreditou. O amigo que, por absoluta falta de numerário, jamais poderia viajar, buscar in-loco aquilo em que acreditava, a existência de alguém supernatural que sabia o significado da vida, trouxe para o parente em fim de vida todas as provas científicas da verdade metafísica, uma contradição em termos, vá lá, mas na qual o outro, depois de muito ler e conversar, acreditou. Por isso se levantou, decidido a adiar a morte e ir em busca da verdade impossível.

Dois meses depois, tendo vendido tudo que possuía, o terceira-idade entrava num avião que, através de São Paulo (hoje nenhum avião carioca parte, nem mesmo pro Supremo Conhecimento, sem passar por São Paulo), deixou-o em Madri, de onde se transferiu pro Marrocos, de onde se transferiu pra Nova Delhi. Depois, Gwalior. Entre vôos, transferências e paradas de descanso, chegou ao seu último posto aéreo.

Aí é que começava a mais longa aventura. Três dias de trem até Ahmadaba, dois até Ingirad, uma semana em ônibus de filme mexicano classe B, de Ingirad a Vadodara, espera de dois dias em Navsari, depois dez dias em cima de burro por estradas pedregosas, ou enlameadas, ou esburacadas, muita chuva e muito sol. Porém, quanto mais sacrifício ele fazia, mais estava convencido de que se aproximava o absoluto. Assim vão as crenças. E aí, num deslumbramento, estava ao pé do monte Chandrapur.



Largou os últimos pesos e, só com um saco com poucos alimentos, subindo e caindo, escorregando e subindo, agora embaixo de uma nevasca que o pegou no primeiro platô, a 200 metros de alto, ele, sete dias depois, chegou ao pico da montanha. E ali, como tanto lhe tinham prometido os livros sagrados, em baixo de uma nuvem de gelo, a cabeça iluminada por luzes irreais, rodopiantes, multicores, sentadão na posição do lótus (ou da papoula, ou do cogumelo, não soube identificar) estava o Guru Supremo, O Omar Prometido, o Ungido.

O ancião se ajoelhou contrito como fora ensinado a fazer, e disse, babando sua última baba terrestre de admiração e fé: ''Meu Guru, meu Profeta, meu Ser Untado e Untuoso, meu Xilóforo. Sou brasileiro, sou carioca, tenho 83 anos, estou à morte. Mas, com minhas últimas forças, vim até aqui por Seca e Meca, por trixas e nomenclaturas, só por saber que meu Mollah, meu Miramolim, ia enfim me revelar qual é o sentido da vida. Me diz, Terapeuta do Mundo, qual é o sentido da vida?''

O Guru olhou pro velho carioca com um olhar de doce e profunda sabedoria e disse, silabando as palavras, lentamente, degustando cada fonema:

''Meu filho distante, agora meu bem amado filho próximo... (Parou, gozando a própria e milenar sabedoria). A vida... a vida é um rio que flui.''

''Um rio que flui?'', ecoou o velho, tão espantado quanto decepcionado.

Mais espantado ainda, o Guru se engasgou: ''Ué, não é não?''




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