domingo, 4 de setembro de 2016

Safatle: Esquerda precisa fazer "uma dura e profunda autocrítica"

O recado do editor

O filósofo Vladimir Safatle tem uma das melhores cabeças da esquerda atual, mas, como muitos intelectuais, não ousa expor suas consistentes críticas ao petismo sem acrescentar, como uma espécie de álibi para evitar a hostilização por parte dos repetidores de slogans simplórios, os desaforos de praxe contra o novo governo.

A vida sofrida que levei me moldou de forma diferente. Pouco me importa o que digam de mim os que não têm coragem de pensar pelas próprias cabeças e formam o contingente interminável dos maria-vai-com-as-outras.


Considero ocioso criticar o lobo porque ele é lobo. Temos é de acabar com os lobos, ao invés de ficarmos fazendo arengas e mais arengas sobre a natureza carnívora dos lobos.


Então, minha prioridade será sempre a de criticar, para ver se toma jeito, quem deveria ter lutado contra os lobos e não o fez pra valer (tendo até mesmo entrado em acordos podres com os ditos cujos!).


Temer está longe de ser um vilão da liga principal, como o corvo Carlos Lacerda era. Não passa de mais um político profissional medíocre, alinhado com uma direita igualmente medíocre. Se tomou o lugar de Dilma, foi apenas porque Dilma, desde que iniciou o segundo mandato, cometeu erro crasso em cima de erro crasso.


Quem nasceu pra Temer nunca chega a Lacerda...


[Uma curiosidade: os presidentes da República responsáveis pelas maiores quedas do PIB brasileiro em toda a nossa história republicana foram, como bem lembrou o Clóvis Rossi, o marechal Floriano Peixoto no século retrasado, o Collor e a Dilma nas últimas décadas. Os dois mais recentes foram impichados. Não se trata de mero acaso.]


Se o PT fosse um partido realmente de esquerda e Dilma governasse realmente como uma mulher de esquerda, a queda não teria sido patética como foi, arrastando-se por quase nove meses sem provocar nenhuma reação significativa por parte das grandes massas, até ela ser mandada para casa por um piparote do Congresso Nacional. Morro de inveja dos chilenos, que produzem Allendes e não Dilmas!


Então, está mais do que na hora de nos cair a ficha: nossa luta principal não é contra os retrocessos que o novo governo trará, pois nada temos mesmo a esperar da democracia burguesa. Ainda que evitados os ditos retrocessos, a sociedade brasileira continuará desigual, injusta e desumana como sempre foi.


Que se trave a luta contra os retrocessos, sim, mas reconhecendo seu caráter secundário! Lutas menores só fazem sentido como acumulação de forças para a luta maior, a solução real e permanente para nossos problemas: a superação do capitalismo. Caso contrário, continuaremos alternando avanços e recuos, patinando sem sair do lugar, até o final dos tempos...


Eis a avaliação corretíssima que Safatle fez da atuação do PT, destacando a extrema necessidade de "uma profunda e dura autocrítica" (hoje é mil vezes mais importante construirmos uma esquerda de verdade, para substituir a que se avacalhou, do que ficarmos grasnando Fora Temer!):


Safatle: PT se desfigurou até tornar-se irreconhecível.

"...Dilma caiu porque a Nova República já não existia de fato. Dilma e seu partido nunca entenderam que o sistema de conciliações e de governabilidade paralisante da Nova República ruíra desde 2013.


Eles nunca entenderam que o país precisava livrar-se de uma era histórica baseada na inércia resultante da obrigação de sempre compor com o atraso, sempre respeitar os interesses das oligarquias, até o ponto em que todos os que ocupassem o poder se desfigurassem, tornando-se irreconhecíveis. Até o último momento, foi questão de negociar o que não se negocia com quem vê a política só como um negócio


Por isso, aqueles que falavam das conquistas democráticas da estabilidade política nacional que acordem para a realidade. Vocês foram enganados. Não poderia haver estabilidade real sustentada por políticos saídos da ditadura militar e por um partido, como o PMDB, que era, afinal, uma oposição criada pela própria ditadura para acomodar oligarquias descontentes e políticos tradicionais confiáveis.


O Brasil achou que poderia virar uma democracia sem se confrontar com seu passado autoritário recente, sem expurgar seus representantes e seus filhos...

"obrigação de sempre compor com o atraso"

...enquanto Michel mudava de casa, as ruas do Brasil foram ocupadas por aqueles que podem enfim lutar a verdadeira luta e abandonar as ilusões que nos venderam.


Os escombros da primeira experiência de longa duração da esquerda brasileira mostrará como os últimos 13 anos foram apenas um ensaio geral. No entanto, será necessário que a esquerda faça aquilo que ela teima ridiculamente em não fazer, a saber, uma profunda e dura autocrítica.


Uma autocrítica em relação à vergonhosa marcha de corrupção que afogou seus governos. Autocrítica em relação à crença nessa política que teme implementar processos de democracia direta e transferência de poder, preferindo se chafurdar nas negociações com coalizações à venda.


Por fim, autocrítica em relação a si mesma, a suas estruturas organizacionais arcaicas dignas dos anos 1950. Nunca na história brasileira foi tão importante o exercício da imaginação, da autoanálise, da insubmissão e do destemor. Que estejamos então à altura do momento e mostremos que o Brasil é maior do que Temer e seus comparsas".


Naufrago da Utopia


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