terça-feira, 23 de novembro de 2010
Meu Tempo
Maria Rita Kelh
Convém que me apresente nessa estréia. Além da combinação única e aleatórea de proteinas, aminoácidos, H2O e tal, sou feita de que? De tempo, assim como vocês. Tempo vivido e tempo imaginado. Feita de passado, o de meus ancestrais, transmitido pelos gens, a cultura, o inconsciente; mais a história de vida que me trouxe até aqui. É só o que temos: um corpo e uma história, já que o presente é uma partícula, deletada tão logo eu acabe de escrever partícula. E o futuro, lamento dizer, não existe. A não ser, é claro, sob a forma de fantasias e projetos. Mas fantasias e projetos são feitos de que? De restos, fiapos, pedaços não resolvidos do passado. No futuro só o que existe na certa é a morte esperando a gente. Deixa quieto.
Àqueles dez anos inaugurais de perplexidade e inquietação, chamo de infância. Tão minha e tão perdida. Ao longo período da dita maturidade eu me refiro como “outro dia mesmo”. Já o pedaço da vida que vai do final da adolescência (aquela chatice) até os trinta, mais ou menos, costumo chamar de “o meu tempo”. Nisso não estou sozinha. Prá muita gente, a referência óbvia para “meu tempo...” é a juventude. Os anos de formação, como diziam os românticos do dezenove. Período das experiências que definiram o que pretendíamos ser, assim como as promessas que continuam a acenar no horizonte das possibilidades.
Um bom amigo que morre de medo de se tornar ultrapassado costuma me contestar com outro refrão: meu tempo é hoje! Mas Paulinho da Viola, que canta o verso de Wilson Batista, “meu mundo é hoje”, tem lá suas ressalvas ao império do presente absoluto: “...mas não me altere o samba tanto assim”. Defendo o modesto passadismo do sambista. A juventude é um período movediço em que se vai meio às cegas por caminhos excitantes, ou idiotas, ou desastrosos, sem saber o que se quer encontrar. Daí a necessidade de estabelecer, a posteriori, alguma solidez pelo menos às recordações daquele tempo. Redescobrir na memória um filme já superado e atribuir a ele significados incríveis; reler um livro que nos fez a cabeça aos 20 anos (Sidharta, todo mundo lia Sidartha – que não li, sei lá por que); reencontrar a praia dos melhores verões como se ainda fosse deserta, passar pela rua onde a casa que foi comunidade hippie está para virar um prédio. São tentativas de consolidar aquele riquíssimo período em que se estabelecem, por tentativa e erro, nossas grandes referências exogâmicas, cosmopolitas, universais.
Tem gente que entra na juventude como se o mundo fosse continuação do quintal familiar. Vai de cabeça sem medo, sem nem se dar conta de que caminha no escuro. Faço parte do outro grupo: para mim, tudo era grande demais. Eu ia, ansiava por ir, mas com um respeito danado pela imensidão à minha frente. Por isso meu tempo não foi tecido apenas das coisas que efetivamente fiz. Sou fiel ao que fiquei devendo à minha geração, essa rede de identificações imaginárias a que julgamos pertencer. A história daquilo que não fiz é minha biografia em baixo relevo, indelével como todos os desejos não realizados.
Maria Rita Kelh
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