Raimundo Santos
As águas turvas da eleição presidencial, particularmente as do segundo turno, não vão impor o resultado do pleito sem resistência das áreas de esquerda e de centro-esquerda defensoras da política fundada no conhecimento intelectual da circunstância, hoje reunidas em torno de Serra. É provável que o pleito se decida a favor do governo por força da hegemonia popular de Lula e da movimentação de inúmeras máquinas organizadas, sobretudo as dos três níveis de governo sob seu controle, o futuro, assim, pertencendo, pelo ativismo do Presidente da República, a Dilma Rousseff. Neste campo eleitoral, o presente é apresentado pela ótica do alargamento da política social originária dos anos 1990, considerado como a grande transformação realizada pelo governo Lula. É tão forte este ponto de vista que outro dia a candidata se admirava ao ver quanto o seu governo fazia no plano social e ainda se mantinha a democracia. Tal estranheza desconsidera os clássicos que repensaram radicalmente o modelo revolucionário do passado e em particular as reflexões dos inúmeros autores que nos falam de um novo reformismo para o século XXI, tempo de grandes possibilidades democráticas e de desenvolvimento, embora ainda arraste guerras, crises, sequelas patológicas (drogas, criminalidade) e elevada fragmentação social de incidência perigosa no mundo político.
Aquele tipo de resistência também esteve presente nos votos adicionais decisivos à passagem de Serra para o segundo turno, contendo, como já foi observado, a ambição do campo liderado pelo Presidente da República. No entanto, à medida que apareça a hipótese de uma vitória oposicionista, o desassossego de Lula certamente o levará a tudo fazer para ganhar a eleição, ficando mais nítido, na sua militância exasperada, o descompromisso com o Estado democrático de direito, já visível desde o seu primeiro governo, quando se passou a usar, de forma consciente na esquerda, a política para fins transformistas (mensalão e outros), havendo agora indícios da dificuldade em aceitar a alternância no poder. Falando mais de si e dos seus feitos do que dos problemas reais e futuros, o Presidente da República também fala — aliás, com muita repercussão inclusive em áreas intelectuais — da necessidade de um segundo ciclo de governos — assim parece ter sido pensada a candidatura oficial — por meio de um “terceiro mandato” até o seu retorno mais adiante.
Por mais que se pinte a candidatura oposicionista como retrocesso para a vida dos pobres e Serra como condenável defensor das privatizações dos anos 1990 — sem a avaliação desses dois temas à luz daquele período das reestruturações requeridas pela mundialização da economia (um tempo, também, em que quase não houve oposição política de esquerda ao governo Fernando Henrique Cardoso) —, é difícil apagar destes dias correntes o fato de que Serra significa uma interrupção do modelo Lula de conduzir o país. Tem vigorado na era Lula um estilo caracterizado pela instrumentalização dos partidos, pela imobilização dos movimentos sociais, pela desvalorização da política (substituída na eleição, em grande medida, pelo carisma presidencial) e ainda marcado (esse é o efeito mais demorado de constantes atitudes presidenciais) por uma corrosão da cultura política democrática, que vem se generalizando (papel importante tem a nova Constituição de 1988, ao dar-lhe lastro de direitos) de modo lento desde a redemocratização, que ganhou curso amplo com a anistia de 1979. Neste contexto, a candidatura oposicionista não se resume à corrida de promessas e marketing — a que Serra se deixou levar —, agora sob pressão e velocidade ainda maiores de um governo que entra em pânico diante da possibilidade de uma derrota eleitoral, quando a plena vigência da democracia política pressupõe normal alternância no poder.
Muitas são as tensões que movimentam esta eleição. No entanto, no campo que apoia a candidatura Serra não há aquele medo, porquanto sua derrota, como ocorreu em 2002, não ensejará ofensivas de rua nem táticas para desestabilizar governo, diferentemente de um cenário em que Serra ganhe o pleito. Há, contudo, uma delas que terá grande importância para o futuro, que é a tensão a pesar como uma ameaça sobre o reconhecimento pleno da política, particularmente partidária, como meio para ganhar a eleição e depois conduzir a república, orientar a economia e encaminhar medidas reformistas dirigidas aos problemas urbanos e rurais.
É bom recordar a trajetória político-partidária da candidatura oposicionista, o próprio Serra tendo que ganhar a indicação para concorrer à presidência em meio a disputa, inclusive com reticências no interior do seu próprio partido, nisso sua escolha diferindo da de Dilma. Composta a sustentação heterogênea da candidatura oposicionista, nas suas áreas de esquerda e de centro-esquerda há crença (expressa em textos e falas públicas) na tradição brasileira que entende a política como processo para obter fins e resultados (no dizer de Habermas, ao qualificar o reformismo deste nosso tempo, fins pensados como distantes do abismo entre o “ideal” e o “possível”, “sem adiar nada para o final dos tempos”), ou seja, como caminho eficaz escolhido para ser trilhado na vigência plena da democracia. Leia-se, no discurso proferido no lançamento de sua candidatura, esta afirmação de Serra: “E esse é um bom momento para reafirmarmos nossos valores. Começando pelo apreço à Democracia Representativa, que foi fundamental para chegarmos aonde chegamos.
Devemos respeitá-la, defendê-la, fortalecê-la. Jamais afrontá-la”. E ainda: “Democracia e Estado de Direito são valores universais, permanentes, insubstituíveis e inegociáveis”.
Viram-se também quantas foram as demoras e quanto custou ao candidato oposicionista e às lideranças de esquerda e de centro-esquerda que lhe são mais próximas reunir apoios partidários para a sua campanha, devido ao fato de que considerável parte do campo político no qual Serra tem sua maior força (partidos, nomes de prestígio político e líderes à frente de administrações municipais e estaduais) teria sido neutralizada pela poderosa influência de Lula, como agora dizem os analistas. Daí também que o seu crescimento nas pesquisas do início do segundo turno possa estar ligado não só à retomada mais animada da campanha como também à dinamização de áreas políticas já libertas daquele constrangimento, havendo ainda registro de tendências de opinião que reagem criticamente ao modo petista de governo, sem que necessariamente se identifiquem com o candidato Serra.
Mesmo que o candidato já esteja no duro jogo eleitoral em curso, o valor da política — assumida por Serra sem reservas — é uma dimensão que escapa das águas turvas e dos palanques exaltados que consomem estas eleições, exibindo os dois candidatos indiferenciados. Aos olhos de setores de esquerda e de centro-esquerda alinhados com Serra, a valorização da política é o que distingue as duas candidaturas, é o que evidencia um discurso que aparece articulado ao modo antigo, em contraste com o outro novo discurso radicado na mobilização variada, sem mediação da política fundada em conhecimento da circunstância, como se vê na evocação diuturna na propaganda de Dilma da figura do Presidente da República.
Agora, nos últimos dias, optou-se na campanha de Dilma pela tática da comparação entre o modelos neoliberal e o social. Apoiar esta opção, tal como se vê na propaganda, significa compartilhar a responsabilidade intelectual da mais completa abstração dos tempos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, como se neles não tivessem sido estruturadas muitas soluções para os problemas hoje aí ainda postos (Plano Real, certas privatizações, fomento da agricultura familiar como estratégia permanente, etc.). Aliás, já passa o momento para que aflore essa discussão sobre o “neoliberalismo brasileiro”, do qual, aliás, se valeu o governo Lula para obter seus êxitos (a propósito daqueles anos 1990 e de reconhecimentos ao governo Lula, ver o lema de Serra “O Brasil pode mais”) e sobre o papel de Fernando Henrique Cardoso, o presidente democraticamente eleito com rejeição em consideráveis áreas da intelectualidade brasileira como jamais se viu neste país.
Sem aquela avaliação intelectual e pública em todos os seus termos, comparar um eventual governo de Serra à época de Fernando Henrique Cardoso não é o que diferencia as duas candidaturas. O fato mais significativo para caracterizar Serra na campanha em andamento, a meu ver, é o fato de que o candidato se reivindica, em pronunciamentos conhecidos (ver o artigo sobre os 25 anos da Nova República publicado pela Folha de S. Paulo e o discurso acima citado), não só descendente da Nova República, como proclama sua adesão sem reservas ao Estado democrático de direito. Essa identificação — à qual às vezes o candidato consegue aludir nos palanques como sua referência — é a questão hoje ameaçada de se perder e é o que baliza ambientes expressivos do campo que apoia Serra.
Está por demais difícil discernir uma questão derivada, importante para se ver o “modelo” de Serra, qual seja, a de que o ponto de vista democrático, na circunstância que vivemos, põe o candidato e um eventual governo seu diante da economia com uma orientação deliberada de administrá-la como um todo. Isso significa atenção tanto aos problemas e às possibilidades das empresas como aos problemas e às possibilidades das famílias, porquanto ambas são patrimônio nacional, como diz o Partito Democrático da Itália, referindo-se aos efeitos predadores da recente crise financeira e aos desafios de se buscar inovações econômico-financeiras, tecnológicas, no campo da economia verde e, também, inovações na esfera política. Adotar de forma pública a adesão sem reservas ao Estado democrático de direito adquire significado de diretriz de postura e de programa (para valer no agir político e nos planos econômico e social) e indica que já não se trabalha com a noção de projeto doutrinário de sociedade futura, mas com programas reformistas conscientemente expostos em discurso público único.
Como também se diz naquele partido europeu — aliás, às voltas com o grande problema da hegemonia efetiva de Berlusconi entre os eleitores italianos —, trata-se de buscar uma aliança com a sociedade, “uma aliança com o país”, e já não mais de se mover na política eleitoral com a ideia de mobilizar forças contra inimigos, sendo aquela a condição para se tornar competitivo e depois ter melhores condições para exercer função de governo. Isso requer, voltando ao tema da política social, ver a melhora da situação dos menos favorecidos não apenas por meio dos sempre indispensáveis programas emergenciais, mas como parte do renovamento da economia como um todo (por exemplo, o caso da agricultura familiar).
E ainda: para que seja tentada, com resultado sustentável, a realização desse tipo de reformas pressupõe contexto político favorável, para o qual são fundamentais os partidos, o Congresso, a opinião pública, uma cultura política democrática e assim por diante, além, por certo, da habilidade no fazer política (reunir energias, convergências e negociar soluções) por parte do dirigente colocado no maior posto da república. Este parece ser — pois também existe o cenário, caso Serra ganhe o pleito, de os perdedores se proporem encaminhar o país para a mais radical oposição — o motivo de o candidato estar falando, agora no segundo turno, do seu propósito de liderar um governo de concentração democrático-reformista, com isso querendo dizer que os atributos do carisma e da sagacidade, sem política, tanto são precários como enfraquecem as já debilitadas instituições democráticas (os partidos, que são os primeiros interlocutores dos gestores públicos). Esse é um caminho difícil, de avanço progressivo e bem diverso da marcha carismática, à medida que esta — como se viu nos últimos tempos — está em busca permanente do poder em crescente detrimento do Estado democrático de direito.
Esse ponto de vista da política, mais precisamente democrático, é o que está em jogo nesta eleição, na qual muitos veem os candidatos pouco diferenciados. Do ponto de vista democrático — aliás, prevalecente em outro momento de crise aguda, o mensalão, quando se preferiu dar sequência ao curso institucional-democrático — muito depende o andamento das coisas nos cenários próximos, ganhe Dilma ou Serra. Mais que uma candidatura tucana, a candidatura Serra está colocada na encruzilhada das duas crenças — crença na política ou na luta pelo poder a qualquer custo —, postando-se Serra como descendente de uma cultura política custosamente acumulada neste país.
Gramsci e o Brasil.
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