Diogo Cunha
Florença, 1513: Maquiavel acabava de ser libertado da prisão após cumprir uma curta pena sob a falsa acusação de conspirar contra o novo governo dos Medici que voltara ao poder no ano anterior. Ele fora solto graças a uma anistia concedida como parte dos festejos pela eleição de Giovanni de Medici, que se tornaria Leão X, para o papado. Assim que reencontrou a liberdade, Maquiavel começou a escrever para amigos, como Francesco Vettori, que pudessem ajudá-lo a conseguir algum cargo no novo regime. Como esses pedidos não surtiram efeito, Maquiavel começou a preencher suas horas de ócio lendo e escrevendo. Foi desse ócio que surgiu O Príncipe, escrito durante o segundo semestre de 1513, obra que iria mudar definitivamente a concepção de política até então vigente.
Como outros autores do Renascimento, Maquiavel, nessa obra, discute o poder da Fortuna nos assuntos humanos, a deusa que trazia consigo a honra, a glória e a riqueza; como outros autores do seu tempo, ele também considerava que, sendo uma mulher, ela podia ser atraída por qualidades viris e enxergava a possibilidade de mantê-la como uma aliada e neutralizar sua natureza volúvel. Como, então, firmar uma aliança com essa deusa? Através da virtù, responde Maquiavel, qualidade do verdadeiro vir. Sendo os homens capazes, portanto, de dobrar a Fortuna para alcançar seus mais altos fins, quais deveriam ser, especificamente, aqueles do governante? Mantenere lo stato, diz Maquiavel, mas não só: além de “manter o estado”, o príncipe devia aspirar à honra, à glória e à riqueza. Desde os moralistas romanos – como Cícero e Lívio – grandes virtudes haviam sido estabelecidas e elas se dividiam em “cardeais” e “principescas”. As primeiras eram a prudência, justiça, fortaleza e temperança; as segundas eram a honestidade, a magnanimidade e a liberalidade.
Se essas virtudes haviam sido retomadas em sua integralidade pelos escritores do Renascimento, Maquiavel vai subverter radicalmente a moral humanista. Para ele, o objetivo de qualquer príncipe é proteger seus interesses num mundo povoado por seres inescrupulosos. Pela primeira vez, escrevia-se que um governante, desejando alcançar os fins mais altos, não pode agir de acordo com a moral. É no capítulo 15 que ele orienta a ação do príncipe: “se deseja manter seu poder, ele deve estar sempre preparado para agir imoralmente quando for necessário”. Um pouco mais adiante, no capítulo 18, ele diz: “Um príncipe sábio faz o bem quando pode, mas, se for necessário reprimir, ele deve estar preparado para agir de modo contrário e ser capaz de fazê-lo”. Deve também aceitar que “para manter seu poder, frequentemente será obrigado pela necessidade a agir de modo traiçoeiro, impiedoso ou desumano”. Maquiavel redefinia assim o conceito de virtù: se, por um lado, tratava-se da qualidade necessária para atrair a Fortuna – nesse sentido ele se situava plenamente no esprit du temps –, por outro ele se descolava das virtudes herdadas dos moralistas romanos. Virtù passava a designar a qualidade de flexibilidade moral do príncipe: para manter o poder – mantenere lo stato – ele precisava ser um simulador, dissimulador e até mesmo cruel.
Munique, 1919: não fazia nem três meses que a Alemanha assinara o armistício que colocava fim aos combates da Primeira Guerra Mundial e o país atravessava um período revolucionário que iria pôr fim ao Reich e dar início à República de Weimar. Há menos de 15 dias, a revolução espartaquista fora violentamente sufocada e a breve República Soviética da Baviera ainda não fora instaurada. Nesse ano de 1919, não fazia muito tempo que Max Weber retomara suas atividades docentes às quais ele renunciara vários anos antes por problemas de saúde. No dia 28 de janeiro desse ano, ele fora convidado por uma associação estudantil para pronunciar a conferência Politik als Beruf – A política como vocação – que se tornou um clássico incontornável da sociologia política. Nessa conferência, Weber aborda questões políticas essenciais e dá a sua célebre definição de Estado, a saber, a comunidade humana que, dentro dos limites de um determinado território reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Mas chamo atenção para a parte final da conferência. Nela, Weber se interroga: “Como se coloca o problema das verdadeiras relações entre a ética e a política?” Para o sociólogo alemão, a ética cristã ou “ética do Evangelho” (dê tudo o que possui ou dê a outra face) é uma ética sem dignidade. Aquele que deseja agir de acordo com ela deve renunciar a entrar na política, pois esta implica necessariamente violência, coação e a impossibilidade de sempre falar a verdade posto que isto pode ser prejudicial para a coletividade. Como Weber afirmou, os primeiros cristãos sabiam perfeitamente que o mundo estava dominado por demônios e que os indivíduos que se comprometessem com a política, isto é, com os instrumentos do poder e da violência, estavam concluindo um pacto com “potências diabólicas”; os primeiros cristãos já sabiam que não era verdade que o bem gerasse o bem e o mal gerasse o mal. Quem deseja a salvação da própria alma ou das almas alheias deve, portanto, evitar os caminhos da política que, por vocação, procura realizar tarefas que não podem ser concretizadas sem violência (se não física, ao menos simbólica, como diria Pierre Bourdieu).
Curitiba, 2018: depois de uma longa saga judicial, a prisão do ex-presidente mais popular da história do Brasil foi decretada. Para alguns, a justiça fez o seu papel, Lula é um criminoso e o império da lei prevaleceu; para outros, entre os quais eu me incluo, ele foi condenado por motivos políticos. Não pretendo, contudo, me aprofundar aqui nessa querela. Mas parece-me que a questão da relação entre ética e política se coloca, no caso da esquerda brasileira e mais especificamente do Partido dos Trabalhadores, em dois níveis. O primeiro é o das ilegalidades cometidas pelo PT que, uma vez no poder, se comportou como os demais. Ninguém na esquerda hoje, com bom senso, nega que, como disse o próprio Jacques Wagner, “o PT se lambuzou”. Tampouco pretendo nos limites desse artigo entrar em outra questão, que divide opiniões na esquerda, se “valeu a pena” ou não incorrer em tais ilegalidades ou ainda se esta era a única forma de o partido promover as melhorias que promoveu, particularmente sua política de redistribuição de renda.
Há, contudo, um segundo nível em que a relação entre ética e política se coloca que é o do homem político – no geral – e da ação política. Maquiavel e Weber, com estilos diferentes e em épocas distintas, mostraram que a política não é lugar de santos, mas de seres humanos cuja ação não pode se guiar pela “ética do Sermão da Montanha”. Além disso, e aqui eu não posso deixar de recorrer a outro teórico político, Claude Lefort, que nos ensinou – a partir de uma releitura profunda da obra de Alexis de Tocqueville – que se numa monarquia o poder era incorporado na pessoa do rei, princípio da geração e da ordem do reino, numa democracia o lugar do poder torna-se vazio. Esse é o traço revolucionário e sem precedentes da democracia. Interdita-se aos governantes de se apropriar, de incorporar o poder; não há, ou não deve haver, uma personalização do poder. É nesse duplo sentido – a necessária e relativa “amoralidade” do exercício do poder, que não implica necessariamente a ilegalidade, e sua despersonalização numa democracia – que a esquerda deve privilegiar a pluralidade existente em seu campo e o debate democrático e não apostar seu futuro na absolvição – ou “retorno”, para usar um termo de cunho sebastianista – de um só homem providencial, no caso Lula. Isso implica a rejeição de qualquer culto à personalidade – termo que faz referência às ditaduras fascistas – ou de uma suposta comunhão do líder com as massas que só Lula poderia encarnar – ideia que faz referência aos populismos modernos.
O culto à personalidade e a ideia da comunhão do líder com as massas têm uma história comum que vai do fascismo ao populismo moderno. Em excelente livro publicado em 2017, intitulado From Fascism to Populism in History, o historiador argentino Federico Finchelstein, professor da New School for Social Research, argumenta que o populismo é uma reformulação do fascismo no contexto das democracias pós-Segunda Guerra Mundial cujo modelo foi dado pelo peronismo argentino. Em outras palavras, o fascismo teria se “metamorfoseado” em populismo, mantendo alguns de seus aspectos essenciais e descartando outros. Por exemplo, as ideias fascistas de comunidade do povo, do líder e da nação formam os elementos fundadores do populismo moderno enquanto outros aspectos foram rejeitados (por exemplo, a violência política extrema e a intenção de destruir inteiramente a democracia).
Sendo a esquerda brasileira plural, há de se reconhecer que existe, dentro dela, setores populistas. E o populismo, junto com o “neototalitarismo” (setores que ainda defendem a herança totalitária e cujos principais gurus são hoje Alain Badiou e Slavoj Zizek) e o “reformismo adesista” (setores da esquerda que no pós-Queda do muro de Berlim se deslocaram para a direita, como o grupo de Fernando Henrique Cardoso no Brasil ou Tony Blair no Reino Unido), configurariam as três “patologias” das esquerdas identificadas por Ruy Fausto (Caminhos da esquerda). Discordo desse eminente filósofo, contudo, quando ele classifica a administração de Lula de populista por ter havido “um sistema errado de poder e de administração [...] [e que o programa redistributivo do PT] veio também associado ao uso abusivo da máquina do Estado em benefício do partido e de particulares ligado a ele”. Penso que se há uma parte da esquerda que é de fato populista, não foi o caso do governo Lula. Basta dizer que em seu governo se deu total garantia à liberdade de imprensa, à separação dos poderes e à independência à Polícia Federal e ao Ministério Público, independência esta que nem o governo liberal anterior proporcionara.
A esquerda brasileira tem um combate titânico pela frente para conseguir se reerguer. Esse combate tem vários flancos. Penso particularmente na necessidade de valorizar o pluralismo e fomentar o diálogo aberto e democrático entre os distintos setores da esquerda tendo em vista a formação de uma frente única que não seja necessariamente encabeçada por alguém do PT; na necessidade de assumir uma postura claramente democrática, especificamente no que concerne a sua relação a governos populistas e autoritários na América Latina, o que implica uma demarcação e uma crítica sem ambiguidades com relação a esses regimes (o que refrearia, por sua vez, as patologias “neototalitárias” e “populistas” do seu campo); e a defesa do ex-presidente Lula. Portanto, essa defesa não deve ser o único combate da esquerda, nem deve se confundir com um culto à personalidade – ou qualquer outro tipo de messianismo ou sebastianismo – ou com a deslegitimação das próximas eleições (“Eleição sem Lula é fraude”). Há de ser uma defesa em nome da verdade e da justiça e que aponte e denuncie objetivamente as ilegalidades que eivaram as investigações às quais o ex-presidente foi submetido (o que já vem sendo feito por importantes juristas). A linha é tênue. Equivocar-se de combate nesse momento reforçaria suas próprias patologias e daria munições para a direita, seja ela populista ou liberal.
Carta Maior
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