quinta-feira, 6 de maio de 2010
A legitimação judicial da tortura
DEBATE ABERTO
Processar e julgar os agentes do Estado que cometeram os crimes imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, como tortura e assassinato de presos políticos, a exemplo do que fizeram Argentina, Chile e Uruguai, é condição essencial para o fortalecimento da democracia no Brasil.
Liszt Vieira
Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei de Anistia se aplica também aos agentes do Estado que cometeram os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar.
O relator do processo, ministro Eros Grau, acolheu parecer do Procurador Geral da República e da Advocacia Geral da União, expressando interesses de certos setores do Governo, e votou pela improcedência da ação movida pela OAB.
A Lei 6683 de 1979, a chamada Lei da Anistia, concedeu anistia aos crimes políticos. E tortura não é, e nunca foi, crime político. A rigor, não se trata de revisão da Lei da Anistia. Nenhuma lei no Brasil jamais estendeu anistia para crimes de tortura. São crimes contra a humanidade praticados por agentes públicos ao arrepio da lei, uma vez que os governos militares nunca reconheceram a tortura como ato oficial de Estado.
O que está em questão é a interpretação da lei, e não sua revisão, que caberia apenas ao Poder Legislativo. Trata-se de saber se a Lei da Anistia se aplica ou não aos agentes públicos que, em nome do Estado, cometeram os crimes de tortura e assassinato de presos políticos.
É estranho defender anistia para quem nunca foi condenado, nem sequer processado. Os agentes de governo, com salários pagos pelo Estado, que torturaram e assassinaram devem ser processados, com todo direito de defesa, e julgados, pois cometeram crime comum. Pior ainda: com a proteção do Estado, contavam e ainda contam com a impunidade característica dos que abusaram do poder. A punição desses criminosos é medida necessária para impedir que tais fatos voltem a se reproduzir.
Um manifesto de ilustres juristas lançado ano passado, entre eles, Dalmo Dallari, Fabio Comparato, Marcio Thomaz Bastos, Cezar Britto e muitos outros, alerta que “pleitear a não apuração desses crimes é defender o descumprimento do Direito e expor o Brasil a ter, a qualquer tempo, seus criminosos julgados em Cortes Internacionais”.
Exemplos não faltam, inclusive a prisão de Pinochet na Inglaterra em outubro de 1998. Atualmente, o Brasil é réu em ação movida pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), acusado de proteger os responsáveis pela tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar.
Esclarece, ainda, o Manifesto dos Juristas que “é consenso na doutrina e jurisprudência internacionais que os atos cometidos pelos agentes do governo durante as ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste sentido, consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não podem ser anistiados por legislação interna, em especial as leis que surgiram após o fim de ditaduras militares”.
A decisão do STF parece se chocar com a doutrina jurídica e a jurisprudência internacional que afirmaram, reiteradas vezes, que crimes de tortura não são crimes políticos, mas sim crimes contra a humanidade.
O Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais que consideram a tortura crime imprescritível. Essas convenções e tratados estão presentes em nossa ordem jurídica após ratificação pelo Congresso Nacional. Assim, não há dúvida de que a tortura é um crime contra a humanidade, imprescritível e não passível de anistia.
O país precisa conhecer seu passado para enfrentar o futuro. A nação tem direito à memória. É um equívoco impor esquecimento, reduzir anistia a amnésia. Para esquecer, é preciso, antes, conhecer. Não se pode esquecer o que foi reprimido, pois o reprimido retorna.
Único país da América Latina que não lutou pela independência, concedida de cima para baixo, o Brasil tem uma tradição conciliatória que, ao longo da História, tem beneficiado suas elites políticas e econômicas. Recorrendo à história, talvez seja possível compreender melhor a decisão conservadora do Supremo Tribunal Federal que estendeu a anistia, feita para crimes políticos, aos crimes comuns cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar.
Processar e julgar os agentes do Estado que cometeram os crimes imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, como tortura e assassinato de presos políticos, a exemplo do que fizeram os governos vizinhos da Argentina, Chile e Uruguai, é condição essencial para o fortalecimento da democracia no Brasil.
Liszt Vieira é Presidente do Jardim Botânico, ex-exilado político e autor de
A Busca – Memórias da Resistência
Carta Maior
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