sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ditadura: lembrar ou esquecer, perdoar ou punir?



Uma das mais interessantes características do cinema argentino é a sutileza com que os cineastas contam histórias intimistas, por intermédio das quais falam dos grandes temas políticos da Argentina. É o que faz Juan Jose Campanella no seu recentemente premiado O Segredo dos seus olhos, mas também nas obras anteriores, como O filho da noiva, “Clube da Lua” e “O mesmo sol, a mesma chuva”, para citar os mais destacados.

É na tentativa de resgatar o que de fato aconteceu, quem foi punido e quem ficou impune que o protagonista de “O segredo…”, Benjamín Expósito, conduz uma narrativa que se divide entre lembrar e esquecer, perdoar e punir.

Essas alternativas estiveram em debate no Brasil durante os cinco meses da discussão em torno do 3º. Plano Nacional de Direitos Humanos, mas foram enterradas mais uma vez na semana passada, quando o governo anunciou uma série de recuos em relação ao possível esclarecimento dos crimes de tortura ocorridos durante a ditadura militar.

Para quem concorda que as mudanças no texto são um retrocesso, sugiro vivamente a leitura de O que resta da ditadura, volume organizado por Edson Telles e Vladimir Safatle, e recém-lançado pela Boitempo Editorial. Integram a coletânea 15 artigos que debate o tema, entre os quais destaco os três que mais me interessaram:

Do uso da violência contra o Estado ilegal, de Vladimir Safatle

O texto tem a contundência necessária para tratar de um tema que, em geral, está imerso em abordagens oblíquas e eufemismos despropositados. O professor de Filosofia da USP diz o que precisa ser dito, com todas as letras, e produz uma das melhores e mais lúcidas argumentações sobre o tema. O autor recorre à tragédia de Antígona para lembrar que “o Estado deixa de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda vez aqueles que foram mortos fisicamente”. Ele está se referindo à proibição, decretada por Creonte, que Antígona enterrasse seu irmão, Polinices.

Uma sociedade que transforma tal anulação em política de Estado, como dizia Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância moral. Não mais tem o direito de existir enquanto Estado. E é isto que acontece a Tebas: ela sela seu fim no momento em que não reconhece mais os corpos dos ‘inimigos do Estado’ como corpos a serem velados.

Teba é aqui, diz Safatle, ao chamar a atenção para o bem sucedido projeto brasileiro de apagar do passado todas as marcas dos crimes cometidos pelo governo militar. E esse apagamento, argumenta ele, se dá como resultado do traço profundamente autoritário da sociedade brasileira. Todos os esforços empreendidos para nos fazer esquecer serão também, como em Tebas, os esforços que levarão à ruína qualquer projeto de consolidação democrática.

Tortura e sintoma social, Maria Rita Kehl

A psicanalista começa lembrando que, assim como acontece com o sintoma individual, que se torna crônico e sem tratamento, o sintoma social também tende a se agravar com o passar do tempo. Por sintoma social, por mais controversa que seja essa idéia na psicanálise, como ela mesma observa, entenda-se o resultado do esquecimento que produz recalque. Não se trata, como no filme de Campanella, de ter esquecido, mas de ter recalcado. O mal-estar forçosamente silenciado acaba por se manifestar em atos que, aparentemente, não parecem ter ligação com a doença.

Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.

Essa doença social teria como “remédio” o ato de tornar públicas as lutas e as histórias que foram recalcadas, e a sociedade brasileira só se livraria de sua violência intrínseca quando pudesse elaborar seus traumas sociais. Kehl cita como exemplo o fato de que a polícia brasileira é a única na América Latina que comete hoje mais crimes do que durante o período do regime militar, fazendo com que a repetição da barbárie seja conseqüência direta da impunidade do que ela chama de “pseudoanistia”.

A “cura” estaria, para ela, na reabertura do debate sobre a tortura no Brasil, com julgamento e punição dos torturadores comprovados, exatamente o oposto do que acabou por ser aprovado no 3º. PNDH.

Dez fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina ou de como os patetas sempre adoram o discurso do poder, Ricardo Lísias

Talvez por recorrer à comparação com a Argentina, e certamente por se referir à literatura, o texto me conquistou desde o título. Lísias defende uma hipótese simples: enquanto na Argentina a literatura tratou de rememorar, reelaborar, memorializar o trauma da ditadura, no Brasil deu-se processo oposto, movimento que se pode comparar também com as distinções entre o cinema brasileiro e o argentino.

Fora alguns títulos iniciais do início dos anos 1980, entre os quais ele destaca “O que é isso companheiro”, de Fernando Gabeira, os traumas nacionais ficaram foras das nossas páginas literárias, mais interessadas em afirmar total ausência de ideologia.

Essa afirmação a-ideológica, no entanto, esconderia o conservadorismo tanto da literatura quanto da crítica literária (sobre esse segundo aspecto, ver o excelente artigo de Flora Sussekind)

Para ele, a dedicação literária à violência urbana seria – e aqui vou tomar emprestado os termos psicanalíticos de Kehl – um tributo à impunidade, uma forma de, valorizando a produção literária da periferia, ignorar a enorme violência antidemocrática da própria existência das periferias. Apagamento da história nas páginas da literatura seria, assim, um pacto com a elite, uma forma de reiterar “as belas letras” no seu lugar privilegiado.

E, para terminar com a citação de um dos mais contundentes trechos de seu artigo, eu cito:

O discurso que tenta soterrar as graves violências perpetradas pelos militares durante a ditadura tem uma força ainda maior do que a estimada até aqui. Mesmo a arte, e um de seus gêneros mais característicos de resistência, a literatura, dobrou-se diante de sua pressão.

Contemporânea por Carla Rodrigues

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