domingo, 30 de maio de 2010
É proibido proibir
Passados pouco mais de 500 anos da Reconquista da Península Ibérica pelo Império Romano, depois de oito séculos sob domínio dos mouros, ainda se mantém acesa, na Espanha, a chama de uma certa “guerra santa” contra o Islã.
A cidade catalã de Lérida (Lleida) foi a primeira no território espanhol a aprovar, ontem, a proibição do uso, em edifícios públicos, da burka e do niqab. São os chamados véus integrais, que cobrem totalmente o corpo da mulher, deixando apenas os olhos de fora – no caso da burka, cobertos por uma rede.
É de se esperar que outras cidades aprovem leis no mesmo sentido. Nos últimos meses, a imprensa espanhola dedicou enorme espaço à polêmica gerada pela expulsão da adolescente Najwa Malha de um colégio em Madri. Motivo: ela se negava a freqüentar as aulas sem o hiyab.
Confesso que me sinto desconfortável quando cruzo com mulheres usando véus – nem tanto com os hiyab, a shayla e o chador, que deixam ver o rosto, mas sobretudo com a burka e o niqab, menos comuns por aqui. Mas este desconforto é um problema meu, não do Estado.
O que me incomoda é o que não compreendo, o que está além do meu universo simbólico, da minha cultura, dos meus valores pessoais. Mas que direito tenho eu de proibir ou permitir que outros tenham valores, culturas e crenças distintos e possam exercê-los em liberdade, como exerço os meus?
A Espanha celebra diariamente a democracia conquistada a duras penas – e constantemente ameaçada pelos franquistas de plantão. Está, agora, diante de uma encruzilhada que colocará à prova a liberdade alardeada como marca do país.
Para mim, a única maneira de levar adiante esse debate com seriedade é despi-lo da cortina de fumaça do discurso político falsamente liberalizante.
Não valem argumentos como “o véu atenta contra a dignidade da mulher, é discriminatório e vulnera o princípio de igualdade entre homens e mulheres”, usados sem distinção da esquerda à direita.
E não valem por dois motivos: 1) o que os europeus entendem por dignidade, discriminação e igualdade difere, em muito, dos conceitos adotados pelas próprias mulheres que usam o véu; e 2) carece de coerência, sob qualquer ponto de vista, a idéia de proibir uma proibição por considerá-la – oh, céus! - cerceadora da liberdade alheia.
Um debate democrático deve ser pautado pelas verdadeiras razões que o ensejaram. E neste caso elas passam muito longe das regras de comportamento desta ou daquela cultura.
Com exceção da Andaluzia – último reduto do reino de Al-Andalus a sucumbir ao avanço dos reis católicos -, a Espanha tem enorme dificuldade em lidar com o cromossomo mouro de sua configuração genética.
Por razões que vão desde a arrogância pura e simples de considerar a civilização européia superior às demais até a mais radical xenofobia, passando pela disputa de postos de trabalho tão escassos numa crise
Estima-se em 800 mil a massa de imigrantes muçulmanos vivendo na Espanha. A presença dos islâmicos na economia espanhola, ainda que nem sempre sob holofotes, é quase tão visível quanto a herança de seus antepassados na arquitetura e na cozinha, para não ir muito longe.
Felizmente há vozes sensatas que, mesmo contrárias ao uso do véu, advogam contra a polêmica por considerá-la “artificial, desnecessária, inoportuna e contraproducente”.
Tomo a liberdade de sublinhar o “artificial”. E ilustro com o depoimento de uma jovem espanhola, filha de palestinos, entrevistada recentemente pelo jornal El País.
Yusra Dahsha tem 18 anos e estuda Direito numa universidade em Madri: “O hiyab me iguala ao homem. O véu permite que me olhem como uma mulher com mente. Não sou um corpo. Escutei um dia desses pelo rádio que uma mulher é uma melena bonita. É repugnante. Só tenho valor por meu cabelo? Prefiro ir com meu véu a ser um pedaço de carne”.
Na ausência de respostas, fecho com uma pergunta da estudante que vai ao cerne da idéia de liberdade: “Por que há anúncios com mulheres seminuas? Isso é uma submissão à moda. O hiyab é minha liberdade. Na Espanha há uma lei que permite o casamento homossexual. Eu a respeito. Por que não respeitam a mim?”
Algumas pistas e novas perguntas num interessante estudo sobre os muçulmanos na Espanha apresentado na Universidade do Minho, em Portugal.
CARTAS DE BARCELONA
Anamaria Rossi
Blog do Noblat
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