Fabían Kovacik
A ensaísta Beatriz Sarlo se define como de esquerda sem renegar seu passado no Partido Comunista, valoriza a obra de Evo Morales e Lula, critica o kirchnerismo e considera o macrismo pobre. Em diálogo com o semanário uruguaio Brecha, ela analisa o fenômeno dos empresários-políticos e destaca a nova esquerda intelectual europeia.
O que deveríamos entender como progressismo hoje?
É um conceito em crise e acredito que os chamados “progressismos latino-americanos” levaram à crise do próprio conceito de progressismo. Porque teríamos de discutir longamente se a soma de um conjunto de políticas contraditórias produz algo progressista como se fosse uma soma algébrica. Alguém poderá dizer que Hugo Chávez é inocente quanto a Nicolas Maduro, mas não aceito isso.
Apesar de Chávez ser uma figura continental com grandes e interessantes qualidades, não se pode esquecer que construiu essa sucessão pelo seu personalismo, e porque foi insensível com o aspecto democrático de um governo progressista. Chávez foi o castrista dos castristas na América Latina.
Portanto, deve-se introduzir o conceito de caudilhismo para entender essa forma de progressismo.
Nem tudo se explica pelo populismo. Chávez encontrou em Cuba o que ele pensou solucionar ou enfrentava de maneira decisiva o poder do imperialismo estadunidense na América Latina. Isso em primeiro lugar é um equívoco. Porque Cuba, sim, soube defender heroicamente seu território na década de 1960, não é um modelo de independência política frente ao imperialismo. Sobretudo pelo que entrega no caminho. Apesar disso, houve casos muito interessantes na América Latina de progressismos quanto a novas formas ou “cultural-progressismo”, por assim dizer.
Por exemplo?
Evo Morales. É um caso muito interessante. Por mais que tenham detectado fissuras nos últimos anos, Evo foi o primeiro que deu ao plurietnicismo, a pluralidade étnica da Bolívia, uma representação política e institucional. E em alguns momentos de sua presidência soube aceitar derrotas que vinham dessa pluralidade.
Quando quis fazer a estrada que atravessava a Amazônia boliviana, lhe exigiram um plebiscito. Ele perdeu esse referendo e não construiu a estrada. Isso teve a ver com sua própria construção política na reforma da Constituição, ao incorporar o referendo e os plebiscitos. E respeitar os resultados. Não fazê-los quando simplesmente se tem a certeza de que vai ganhar, mas quando o resultado não é assegurado, segundo a vontade dos governantes.
Acredito que Evo é um governante interessante. Deixo de lado Uruguai e Chile, que são países muito institucionais na perspectiva latino-americana e tiveram seus governos progressistas com traços altamente populistas, como Pepe Mujica, e altamente liberais, como Tabaré Vázquez. Mas souberam controlar suas transições democráticas de maneira bastante organizada, algo que tem a ver com suas tradições políticas, o que não ocorre por igual em outros países da vizinhança.
Não digo que os dois se parecem, mas têm certa estabilidade institucional, com um respeito pelos pactos que o resto da América Latina considera uma peculiaridade.
Só Evo Morales é exemplo nesses últimos anos?
E o primeiro governo Lula no Brasil. O caminho que fez Lula é exemplar. Fundou um partido há 30 anos, quando era dirigente sindical em São Paulo, e se rodeou dos melhores intelectuais do Brasil. Mais tarde esse partido teria os problemas e vícios da político e vícios da política brasileira, mas eles fundaram aquilo. Lula neste momento queria institucionalizar um partido progressista que superasse o conjunto dos partidos estaduais que faziam os pactos da política brasileira, e conseguiu.
Além do mais, foi inédito na América Latina que um dirigente sindical conseguisse rodear-se dos melhores intelectuais para fazer isso. Não se pode comparar com nenhum caso latino-americano. Depois, na presidência, tomou os rumos da época, que era uma espécie de triunfalismo sul-americanista que hoje se mostra sem base. Mas por isso digo que não são comparáveis.
Mas essas experiências progressistas também são criticadas desde a esquerda tradicional. Que papel lhe cabe a essa esquerda mais crítica?
É importante que existam tais grupos, em geral de origem trotskista, fortemente anticapitalistas, porque dão testemunho da desigualdade radical nas sociedades capitalistas. Há algo que parecem não aceitar, que é a ausência do socialismo no mundo. Não digo que não haverá. Em 1989 caiu o muro de Berlim, mas antes já sabíamos que a União Soviética não era socialista. Os trotskistas sabiam perfeitamente. A República Popular da China era autoritária. Todos os que estivemos perto da República Popular da China como militantes podemos recordar da escassez e mortes.
É ótimo que existam grupos inevitavelmente minoritários que lembrem que o capitalismo é um regime de enormes desigualdades. Mas hoje parece não ter outra alternativa. Estamos em uma situação onde aquilo que se impôs no mundo são distintas formas de exploração capitalista. Isso não dá alegria a nós que somos de esquerda, mas temos de reconhecer para fazer política. Essas formas de exploração são sempre desiguais e muitas vezes corruptas.
E sobre essa realidade, como trabalha uma intelectual de esquerda, como você acabou de se definir?
Não dá pra reverter hoje a situação. Não há massas insubordinadas que possam avançar sobre as cidadelas e fortalezas do poder capitalista. Essa foi uma longa discussão dentro do marxismo. Foi a discussão que deu origem à socialdemocracia da Segunda Internacional, no século 19. Ali houve dirigentes marxistas que pensaram que não havia condições senão para uma democracia representativa, a qual se tentaria levar o mais adiante possível.
Não é a primeira vez que isso acontece. Contra as previsões do marxismo, a revolução se produziu em uma região marginal e atrasada do capitalismo, como era a Rússia. O marxismo via a revolução primeiro na Alemanha ou em algum lugar parecido. Isso quer dizer que não podemos dizer que as previsões do marxismo se cumpriram ao pé da letra.
Diante desse retrocesso da esquerda também aparece globalmente em retrocesso a figura da militância tradicional e surge o midiático e a cibermilitância, hoje. Qual é seu olhar sobre esse fenômeno, tendo em conta seu livro clássico Cenas da Vida Pós-Moderna?
Nos anos em que na Argentina apareceu o Frepaso (Frente País Solidário, coalizão de partidos argentinos que atuou entre 1994 e 2001), no começo dos anos 90, não tinha cibermilitância. Esse fenômeno conheço bem. O Frepaso de Chacho Álvarez e Graciela Fernandes Miejide aproveitaria, com esses dois grandes dirigentes muito bem treinados pelos meios de comunicação audiovisuais, essas possibilidades de difusão. Era um partido com elementos populistas e progressistas muito fortes, e com um grande peso dos intelectuais e ideias. Não é tanto uma questão de se as redes sociais substituem a TV ou a TV substitui as redes sociais. Mas, e conheço de experiência própria, o peso que as ideias tinham sobre os dirigentes. Isso desapareceu. E é importante refletir.
Podemos colocar data para esse esvaziamento de ideias na política?
Não há um momento exato, porque cada partido tem sua própria história. Na Argentina, poderíamos apontar o radicalismo, que fez um governo desastroso e caiu junto com o Frepaso. As ideias foram importantes. Ricardo Alfonsín dava importância enorme às ideias, mas Carlos Menem não. O Frepaso não é o primeiro partido no qual há uma forte inclinação a pensar a política em termos de horizonte de transformação utópica, digamos.
Mas, de outro lado, podemos apontar o último?
Pode ter sido o último, junto com a União Cívica Radical. De fato é. Hoje, a UCR não é mais um partido. Entregou tudo o que lhe restava, que era sua forte capacidade territorial. O radicalismo entregou tudo isso ao PRO de Maurício Macri e hoje já é um partido despedaçado, desidratado.
Do Frepaso, depois da renúncia de Chacho Álvarez à vice-presidência da República, ficou muito pouco. Não era um partido de grandes estruturas, mas com dirigentes mobilizados. Não é que foi cooptado pelo kirchnerismo. Os que vinham de uma matriz peronista voltaram. E voltaram a um kirchnerismo que renovava promessas de 1973. Tudo falsamente adornado por uma espécie de Carnaval ideológico.
Podia-se acreditar em outra coisa quando Néstor Kirchner assumiu?
Por que não podia se acreditar em outra coisa? Ou, pelo menos, por que acreditar nisto? Sobretudo estou pensando nos intelectuais, dado que muitos dos que passaram para o kirchnerismo têm traços intelectuais. Por que não? Quando fui cobrir para o Página 12 a entrada de Kirchner na ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), em 2004, ele disse: “venho aqui porque o Estado Nacional nunca fez nada pelos desaparecidos”. Pensei, “nossa, esse homem mente e se mente ao mesmo tempo”, dado que demonstrava enorme convicção no que estava dizendo. Depois, de tarde, teve que chamar Alfonsín para se desculpar. A modalidade do kirchnerismo de rearmar a história passada, presente e futura já estava no discurso. Por outra parte, há de se ver que no kirchnerismo confluiu somente uma juventude militante, que poderia ser La Cámpora, mas também gente entre 50 e 65 anos, que disse “eu perdi em 1973, mataram meus amigos, fui derrotado. Fico com isto”.
Como explica que o kirchnerismo apaixonou gente de esquerda dos anos 60, se foi uma “grande mentira”?
Não foi só uma grande mentira. Essa história tem de ser escrita novamente. Os planos sociais com os quais se saiu da crise de 2001 estavam todos em marcha quando subiu Kirchner, e haviam sido pautados por Eduardo Duhalde, que para mim é a grande biografia política argentina do começo do século. Seus planos foram a base, a gestão do ministro Roberto Lavagna, as “manzaneras” (tomadas do exemplo cubano de trabalho de mulheres nos bairros) e o Fundo de Recuperação, que Duhalde exigiu a Menem para lograr governabilidade, primeiro, em Buenos Aires. Sem isso nada teria sido possível para diminuir a pobreza da Grande Buenos Aires.
Isso é o que os grandes meios de comunicação chamam de “o relato”. Mas cada governo não tem seu relato; o macrismo não teria sua própria narrativa?
A narrativa macrista é pobre porque acredita nessas transmissões. É fraca a narrativa porque o macrismo é fraco ideologicamente. O PRO é o primeiro partido de governo que fala para as pessoas sem tradição política. Os partidos até a era PRO se formavam no que os latinos chamavam de “cursus honorum”; um entrava para o partido, militava no bairro ou na universidade, segundo cada dirigente. Agora, vemos gente que vêm do outro lado. Seu cursus honorum foi feito nas empresas. É uma novidade enorme.
Há exemplos em outros lugares do mundo? Penso em Donald Trump nos Estados Unidos, o empresário Pedro Kuczynski no Peru ou Guillermo Lasso no Equador...
Sem dúvida que há exemplos em muitos países ao redor do mundo. Trump é um caso mais glamoroso porque entrou diretamente na presidência do país mais importante do mundo. Há aquela que acreditou ser a política líder do mundo europeu, Angela Merkel: quem ler sua biografia vê que cumpriu todos os passos dos políticos. Aos 16 anos, se filiou ao direitista partido Social Cristão e deu todos os passos dentro desse partido. Na Espanha, na França e na Grã Bretanha os partidos ainda funcionam. Talvez o primeiro adiantado dessa história seja Silvio Berlusconi, que vem da televisão e do futebol.
Como ser um intelectual de esquerda neste mundo?
Um intelectual de esquerda, se quiser seguir considerando-se um intelectual progressista, que faça jus a uma tradição começada no século 19 (a única coisa que eu conservo verdadeiramente do marxismo), deve ser autocrítico. O principio é a autocrítica. Se não, não há possibilidade de repensar nossa tradição.
Há alguma esquerda no mundo que tenha feito autocrítica?
Houve uma esquerda britânica, onde estavam Raymond Williams e Terry Eagleton, que não cometeu a mesma quantidade de erros que tiveram as esquerdas continentais europeias e latino-americanas. Manteve alguns laços com o partido trabalhista e pôde repensar algumas tradições.
Também há gente que pensa a política de maneira renovada, mais além do que venha da esquerda ou não. Mas no caminho que abre Claude Lefort tem gente como Pierre Rosanvallon, que pensa a política de uma maneira diferente. Nós, que somos de antes, ainda que pensemos como Rosanvallon ou Lefort, não podemos esquecer dos nossos erros.
Fabían Kovacik é jornalista do Brecha, semanário impresso publicado em Montevidéu.
Traduzido por Gabriel Brito e Raphael Sanz, jornalistas do Correio da Cidadania.
Correio da cidadania
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