sábado, 25 de março de 2017

Beatriz Sarlo: “os progressismos latino-americanos levaram à crise do conceito de progressismo”

Fabían Kovacik

A en­saísta Be­a­triz Sarlo se de­fine como de es­querda sem re­negar seu pas­sado no Par­tido Co­mu­nista, va­lo­riza a obra de Evo Mo­rales e Lula, cri­tica o kir­ch­ne­rismo e con­si­dera o ma­crismo pobre. Em diá­logo com o se­ma­nário uru­guaio Brecha, ela ana­lisa o fenô­meno dos em­pre­sá­rios-po­lí­ticos e des­taca a nova es­querda in­te­lec­tual eu­ro­peia.

O que de­ve­ríamos en­tender como pro­gres­sismo hoje?

É um con­ceito em crise e acre­dito que os cha­mados “pro­gres­sismos la­tino-ame­ri­canos” le­varam à crise do pró­prio con­ceito de pro­gres­sismo. Porque te­ríamos de dis­cutir lon­ga­mente se a soma de um con­junto de po­lí­ticas con­tra­di­tó­rias produz algo pro­gres­sista como se fosse uma soma al­gé­brica. Al­guém po­derá dizer que Hugo Chávez é ino­cente quanto a Ni­colas Ma­duro, mas não aceito isso.



Apesar de Chávez ser uma fi­gura con­ti­nental com grandes e in­te­res­santes qua­li­dades, não se pode es­quecer que cons­truiu essa su­cessão pelo seu per­so­na­lismo, e porque foi in­sen­sível com o as­pecto de­mo­crá­tico de um go­verno pro­gres­sista. Chávez foi o cas­trista dos cas­tristas na Amé­rica La­tina.



Por­tanto, deve-se in­tro­duzir o con­ceito de cau­di­lhismo para en­tender essa forma de pro­gres­sismo.



Nem tudo se ex­plica pelo po­pu­lismo. Chávez en­con­trou em Cuba o que ele pensou so­lu­ci­onar ou en­fren­tava de ma­neira de­ci­siva o poder do im­pe­ri­a­lismo es­ta­du­ni­dense na Amé­rica La­tina. Isso em pri­meiro lugar é um equí­voco. Porque Cuba, sim, soube de­fender he­roi­ca­mente seu ter­ri­tório na dé­cada de 1960, não é um mo­delo de in­de­pen­dência po­lí­tica frente ao im­pe­ri­a­lismo. So­bre­tudo pelo que en­trega no ca­minho. Apesar disso, houve casos muito in­te­res­santes na Amé­rica La­tina de pro­gres­sismos quanto a novas formas ou “cul­tural-pro­gres­sismo”, por assim dizer.



Por exemplo?



Evo Mo­rales. É um caso muito in­te­res­sante. Por mais que te­nham de­tec­tado fis­suras nos úl­timos anos, Evo foi o pri­meiro que deu ao plu­ri­et­ni­cismo, a plu­ra­li­dade ét­nica da Bo­lívia, uma re­pre­sen­tação po­lí­tica e ins­ti­tu­ci­onal. E em al­guns mo­mentos de sua pre­si­dência soube aceitar der­rotas que vi­nham dessa plu­ra­li­dade.



Quando quis fazer a es­trada que atra­ves­sava a Amazônia bo­li­viana, lhe exi­giram um ple­bis­cito. Ele perdeu esse re­fe­rendo e não cons­truiu a es­trada. Isso teve a ver com sua pró­pria cons­trução po­lí­tica na re­forma da Cons­ti­tuição, ao in­cor­porar o re­fe­rendo e os ple­bis­citos. E res­peitar os re­sul­tados. Não fazê-los quando sim­ples­mente se tem a cer­teza de que vai ga­nhar, mas quando o re­sul­tado não é as­se­gu­rado, se­gundo a von­tade dos go­ver­nantes.



Acre­dito que Evo é um go­ver­nante in­te­res­sante. Deixo de lado Uru­guai e Chile, que são países muito ins­ti­tu­ci­o­nais na pers­pec­tiva la­tino-ame­ri­cana e ti­veram seus go­vernos pro­gres­sistas com traços al­ta­mente po­pu­listas, como Pepe Mu­jica, e al­ta­mente li­be­rais, como Ta­baré Váz­quez. Mas sou­beram con­trolar suas tran­si­ções de­mo­crá­ticas de ma­neira bas­tante or­ga­ni­zada, algo que tem a ver com suas tra­di­ções po­lí­ticas, o que não ocorre por igual em ou­tros países da vi­zi­nhança.



Não digo que os dois se pa­recem, mas têm certa es­ta­bi­li­dade ins­ti­tu­ci­onal, com um res­peito pelos pactos que o resto da Amé­rica La­tina con­si­dera uma pe­cu­li­a­ri­dade.



Só Evo Mo­rales é exemplo nesses úl­timos anos?



E o pri­meiro go­verno Lula no Brasil. O ca­minho que fez Lula é exem­plar. Fundou um par­tido há 30 anos, quando era di­ri­gente sin­dical em São Paulo, e se ro­deou dos me­lhores in­te­lec­tuais do Brasil. Mais tarde esse par­tido teria os pro­blemas e ví­cios da po­lí­tico e ví­cios da po­lí­tica bra­si­leira, mas eles fun­daram aquilo. Lula neste mo­mento queria ins­ti­tu­ci­o­na­lizar um par­tido pro­gres­sista que su­pe­rasse o con­junto dos par­tidos es­ta­duais que fa­ziam os pactos da po­lí­tica bra­si­leira, e con­se­guiu.



Além do mais, foi iné­dito na Amé­rica La­tina que um di­ri­gente sin­dical con­se­guisse ro­dear-se dos me­lhores in­te­lec­tuais para fazer isso. Não se pode com­parar com ne­nhum caso la­tino-ame­ri­cano. De­pois, na pre­si­dência, tomou os rumos da época, que era uma es­pécie de triun­fa­lismo sul-ame­ri­ca­nista que hoje se mostra sem base. Mas por isso digo que não são com­pa­rá­veis.



Mas essas ex­pe­ri­ên­cias pro­gres­sistas também são cri­ti­cadas desde a es­querda tra­di­ci­onal. Que papel lhe cabe a essa es­querda mais crí­tica?



É im­por­tante que existam tais grupos, em geral de origem trots­kista, for­te­mente an­ti­ca­pi­ta­listas, porque dão tes­te­munho da de­si­gual­dade ra­dical nas so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas. Há algo que pa­recem não aceitar, que é a au­sência do so­ci­a­lismo no mundo. Não digo que não ha­verá. Em 1989 caiu o muro de Berlim, mas antes já sa­bíamos que a União So­vié­tica não era so­ci­a­lista. Os trots­kistas sa­biam per­fei­ta­mente. A Re­pú­blica Po­pular da China era au­to­ri­tária. Todos os que es­ti­vemos perto da Re­pú­blica Po­pular da China como mi­li­tantes po­demos re­cordar da es­cassez e mortes.



É ótimo que existam grupos ine­vi­ta­vel­mente mi­no­ri­tá­rios que lem­brem que o ca­pi­ta­lismo é um re­gime de enormes de­si­gual­dades. Mas hoje pa­rece não ter outra al­ter­na­tiva. Es­tamos em uma si­tu­ação onde aquilo que se impôs no mundo são dis­tintas formas de ex­plo­ração ca­pi­ta­lista. Isso não dá ale­gria a nós que somos de es­querda, mas temos de re­co­nhecer para fazer po­lí­tica. Essas formas de ex­plo­ração são sempre de­si­guais e muitas vezes cor­ruptas.



E sobre essa re­a­li­dade, como tra­balha uma in­te­lec­tual de es­querda, como você acabou de se de­finir?



Não dá pra re­verter hoje a si­tu­ação. Não há massas in­su­bor­di­nadas que possam avançar sobre as ci­da­delas e for­ta­lezas do poder ca­pi­ta­lista. Essa foi uma longa dis­cussão dentro do mar­xismo. Foi a dis­cussão que deu origem à so­ci­al­de­mo­cracia da Se­gunda In­ter­na­ci­onal, no sé­culo 19. Ali houve di­ri­gentes mar­xistas que pen­saram que não havia con­di­ções senão para uma de­mo­cracia re­pre­sen­ta­tiva, a qual se ten­taria levar o mais adi­ante pos­sível.



Não é a pri­meira vez que isso acon­tece. Contra as pre­vi­sões do mar­xismo, a re­vo­lução se pro­duziu em uma re­gião mar­ginal e atra­sada do ca­pi­ta­lismo, como era a Rússia. O mar­xismo via a re­vo­lução pri­meiro na Ale­manha ou em algum lugar pa­re­cido. Isso quer dizer que não po­demos dizer que as pre­vi­sões do mar­xismo se cum­priram ao pé da letra.



Di­ante desse re­tro­cesso da es­querda também apa­rece glo­bal­mente em re­tro­cesso a fi­gura da mi­li­tância tra­di­ci­onal e surge o mi­diá­tico e a ci­ber­mi­li­tância, hoje. Qual é seu olhar sobre esse fenô­meno, tendo em conta seu livro clás­sico Cenas da Vida Pós-Mo­derna?



Nos anos em que na Ar­gen­tina apa­receu o Fre­paso (Frente País So­li­dário, co­a­lizão de par­tidos ar­gen­tinos que atuou entre 1994 e 2001), no co­meço dos anos 90, não tinha ci­ber­mi­li­tância. Esse fenô­meno co­nheço bem. O Fre­paso de Chacho Ál­varez e Gra­ciela Fer­nandes Mi­e­jide apro­vei­taria, com esses dois grandes di­ri­gentes muito bem trei­nados pelos meios de co­mu­ni­cação au­di­o­vi­suais, essas pos­si­bi­li­dades de di­fusão. Era um par­tido com ele­mentos po­pu­listas e pro­gres­sistas muito fortes, e com um grande peso dos in­te­lec­tuais e ideias. Não é tanto uma questão de se as redes so­ciais subs­ti­tuem a TV ou a TV subs­titui as redes so­ciais. Mas, e co­nheço de ex­pe­ri­ência pró­pria, o peso que as ideias ti­nham sobre os di­ri­gentes. Isso de­sa­pa­receu. E é im­por­tante re­fletir.



Po­demos co­locar data para esse es­va­zi­a­mento de ideias na po­lí­tica?



Não há um mo­mento exato, porque cada par­tido tem sua pró­pria his­tória. Na Ar­gen­tina, po­de­ríamos apontar o ra­di­ca­lismo, que fez um go­verno de­sas­troso e caiu junto com o Fre­paso. As ideias foram im­por­tantes. Ri­cardo Al­fonsín dava im­por­tância enorme às ideias, mas Carlos Menem não. O Fre­paso não é o pri­meiro par­tido no qual há uma forte in­cli­nação a pensar a po­lí­tica em termos de ho­ri­zonte de trans­for­mação utó­pica, di­gamos.



Mas, de outro lado, po­demos apontar o úl­timo?



Pode ter sido o úl­timo, junto com a União Cí­vica Ra­dical. De fato é. Hoje, a UCR não é mais um par­tido. En­tregou tudo o que lhe res­tava, que era sua forte ca­pa­ci­dade ter­ri­to­rial. O ra­di­ca­lismo en­tregou tudo isso ao PRO de Mau­rício Macri e hoje já é um par­tido des­pe­da­çado, de­si­dra­tado.



Do Fre­paso, de­pois da re­núncia de Chacho Ál­varez à vice-pre­si­dência da Re­pú­blica, ficou muito pouco. Não era um par­tido de grandes es­tru­turas, mas com di­ri­gentes mo­bi­li­zados. Não é que foi co­op­tado pelo kir­ch­ne­rismo. Os que vi­nham de uma ma­triz pe­ro­nista vol­taram. E vol­taram a um kir­ch­ne­rismo que re­no­vava pro­messas de 1973. Tudo fal­sa­mente ador­nado por uma es­pécie de Car­naval ide­o­ló­gico.



Podia-se acre­ditar em outra coisa quando Néstor Kir­chner as­sumiu?



Por que não podia se acre­ditar em outra coisa? Ou, pelo menos, por que acre­ditar nisto? So­bre­tudo estou pen­sando nos in­te­lec­tuais, dado que muitos dos que pas­saram para o kir­ch­ne­rismo têm traços in­te­lec­tuais. Por que não? Quando fui co­brir para o Pá­gina 12 a en­trada de Kir­chner na ESMA (Es­cola Su­pe­rior de Me­câ­nica da Ar­mada), em 2004, ele disse: “venho aqui porque o Es­tado Na­ci­onal nunca fez nada pelos de­sa­pa­re­cidos”. Pensei, “nossa, esse homem mente e se mente ao mesmo tempo”, dado que de­mons­trava enorme con­vicção no que es­tava di­zendo. De­pois, de tarde, teve que chamar Al­fonsín para se des­culpar. A mo­da­li­dade do kir­ch­ne­rismo de re­armar a his­tória pas­sada, pre­sente e fu­tura já es­tava no dis­curso. Por outra parte, há de se ver que no kir­ch­ne­rismo con­fluiu so­mente uma ju­ven­tude mi­li­tante, que po­deria ser La Cám­pora, mas também gente entre 50 e 65 anos, que disse “eu perdi em 1973, ma­taram meus amigos, fui der­ro­tado. Fico com isto”.



Como ex­plica que o kir­ch­ne­rismo apai­xonou gente de es­querda dos anos 60, se foi uma “grande men­tira”?



Não foi só uma grande men­tira. Essa his­tória tem de ser es­crita no­va­mente. Os planos so­ciais com os quais se saiu da crise de 2001 es­tavam todos em marcha quando subiu Kir­chner, e ha­viam sido pau­tados por Edu­ardo Duhalde, que para mim é a grande bi­o­grafia po­lí­tica ar­gen­tina do co­meço do sé­culo. Seus planos foram a base, a gestão do mi­nistro Ro­berto La­vagna, as “man­za­neras” (to­madas do exemplo cu­bano de tra­balho de mu­lheres nos bairros) e o Fundo de Re­cu­pe­ração, que Duhalde exigiu a Menem para lo­grar go­ver­na­bi­li­dade, pri­meiro, em Bu­enos Aires. Sem isso nada teria sido pos­sível para di­mi­nuir a po­breza da Grande Bu­enos Aires.



Isso é o que os grandes meios de co­mu­ni­cação chamam de “o re­lato”. Mas cada go­verno não tem seu re­lato; o ma­crismo não teria sua pró­pria nar­ra­tiva?



A nar­ra­tiva ma­crista é pobre porque acre­dita nessas trans­mis­sões. É fraca a nar­ra­tiva porque o ma­crismo é fraco ide­o­lo­gi­ca­mente. O PRO é o pri­meiro par­tido de go­verno que fala para as pes­soas sem tra­dição po­lí­tica. Os par­tidos até a era PRO se for­mavam no que os la­tinos cha­mavam de “cursus ho­norum”; um en­trava para o par­tido, mi­li­tava no bairro ou na uni­ver­si­dade, se­gundo cada di­ri­gente. Agora, vemos gente que vêm do outro lado. Seu cursus ho­norum foi feito nas em­presas. É uma no­vi­dade enorme.



Há exem­plos em ou­tros lu­gares do mundo? Penso em Do­nald Trump nos Es­tados Unidos, o em­pre­sário Pedro Kuczynski no Peru ou Guil­lermo Lasso no Equador...



Sem dú­vida que há exem­plos em muitos países ao redor do mundo. Trump é um caso mais gla­mo­roso porque en­trou di­re­ta­mente na pre­si­dência do país mais im­por­tante do mundo. Há aquela que acre­ditou ser a po­lí­tica líder do mundo eu­ropeu, An­gela Merkel: quem ler sua bi­o­grafia vê que cum­priu todos os passos dos po­lí­ticos. Aos 16 anos, se fi­liou ao di­rei­tista par­tido So­cial Cristão e deu todos os passos dentro desse par­tido. Na Es­panha, na França e na Grã Bre­tanha os par­tidos ainda fun­ci­onam. Talvez o pri­meiro adi­an­tado dessa his­tória seja Silvio Ber­lus­coni, que vem da te­le­visão e do fu­tebol.



Como ser um in­te­lec­tual de es­querda neste mundo?



Um in­te­lec­tual de es­querda, se quiser se­guir con­si­de­rando-se um in­te­lec­tual pro­gres­sista, que faça jus a uma tra­dição co­me­çada no sé­culo 19 (a única coisa que eu con­servo ver­da­dei­ra­mente do mar­xismo), deve ser au­to­crí­tico. O prin­cipio é a au­to­crí­tica. Se não, não há pos­si­bi­li­dade de re­pensar nossa tra­dição.



Há al­guma es­querda no mundo que tenha feito au­to­crí­tica?



Houve uma es­querda bri­tâ­nica, onde es­tavam Ray­mond Wil­liams e Terry Ea­gleton, que não co­meteu a mesma quan­ti­dade de erros que ti­veram as es­querdas con­ti­nen­tais eu­ro­peias e la­tino-ame­ri­canas. Man­teve al­guns laços com o par­tido tra­ba­lhista e pôde re­pensar al­gumas tra­di­ções.



Também há gente que pensa a po­lí­tica de ma­neira re­no­vada, mais além do que venha da es­querda ou não. Mas no ca­minho que abre Claude Le­fort tem gente como Pi­erre Ro­san­vallon, que pensa a po­lí­tica de uma ma­neira di­fe­rente. Nós, que somos de antes, ainda que pen­semos como Ro­san­vallon ou Le­fort, não po­demos es­quecer dos nossos erros.





Fa­bían Ko­vacik é jor­na­lista do Brecha, se­ma­nário im­presso pu­bli­cado em Mon­te­vidéu.

Tra­du­zido por Ga­briel Brito e Raphael Sanz, jor­na­listas do Cor­reio da Ci­da­dania.



Correio da cidadania


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