domingo, 10 de abril de 2016
Que julgamento é possível na era do empobrecimento da subjetividade?
Marcia Tiburi e Rubens Casara
A ausência de reflexão é uma das causas da personalidade autoritária. A crença no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais é característica dessa personalidade. A percepção de que os direitos e garantias fundamentais são obstáculos tanto à eficiência repressiva do Estado quanto ao funcionamento do mercado são, por sua vez, sintomas de uma sociedade formada por pessoas que se acostumaram com o arbítrio e que se revelam incapazes de compreender a importância dos limites ao exercício do poder inerentes ao Estado Democrático de Direito.
É nesse contexto que vemos surgir o desejo por ações autoritárias. Para muitos, elas permitem aplacar o medo provocado pela simples possibilidade do exercício da autonomia individual e, evidentemente, as responsabilidades dela decorrentes, aquelas que nos inscrevem junto de nossos direitos como cidadãos a construir uma sociedade na pluralidade de sua ação e de sua cultura.
No contexto autoritário, propício à ação sem reflexão, surge o culto aos símbolos de poder (como a “toga”), às pessoas (construídas como heróis e celebridades) e aos slogans que se caracterizam por simplificar a complexidade dos fenômenos e funcionar como “prótese do pensamento” para aqueles que vivem em termos de empobrecimento subjetivo, ético e político.
Esse empobrecimento, necessário à manutenção da tradição autoritária em que está inserida a sociedade brasileira, não é obra do acaso. Trata-se de um projeto político que aposta no aprofundamento da alienação, na transformação dos cidadãos em meros consumidores acríticos, na criação de inimigos (pessoas a quem não deve ser assegurados direitos inerentes à condição de cidadão) e na mercantilização dos direitos fundamentais (que torna negociáveis os direitos fundamentais e inviabiliza a democracia substancial), isso através da produção de um conjunto de imagens, representações, mitos, preconceitos, crenças, estereótipos, hábitos de censura enunciativa e outros fenômenos que governam anonimamente as ações de cada um em um dado contexto histórico. Superar esse quadro passa necessariamente por resgatar categorias que esse mesmo projeto político autoritário procurou esconder, tais como as de ideologia e de luta de classes, bem como reconhecer que a democracia exige o reconhecimento de limites relativos ao que pode, ou não, ser decidido pelos agentes estatais.
No campo da prática judicial, os processos de construção de subjetividades autoritárias influem em dois planos: no resultado da atuação dos atores jurídicos e na fundamentação das ações, omissões e decisões tomadas. Desse projeto de subjetivação resultam atuações baseadas no senso comum mais rasteiro (com, por exemplo, o recurso à manipulação dos significantes “corrupção”, mesmo que para isso seja necessário corromper o sistema de direitos e garantias assegurado pela Constituição da República, e “violência”, sempre manejado de forma seletiva e reduzido à questão intersubjetiva, em total desconsideração às violências simbólica e estrutural, esta, em grande parte, produzida pelo funcionamento “normal” do próprio sistema de justiça criminal) e na burocratização, entendida como a despersonalização do ator jurídico, tudo isso ao gosto do projeto de homogeneização/banalização do pensamento.
Porém, é preciso lembrar que o ato de julgar ultrapassa os limites do direito posto. Ele não se limita à função jurisdicional na qual o texto legal é transformado em norma pelo intérprete (certo que um contexto ou um intérprete autoritário tendem à criação de uma norma autoritária). O ato de julgar realiza-se nas mais diversas esferas da vida. Em nosso dia a dia costumamos julgar não apenas os atos uns dos outros, mas a própria pessoa, do seu ser ao seu aparecer é matéria de julgamento.
Nosso julgamento é baseado em nosso gosto, em nossa visão de mundo e em nosso senso moral. Trata-se de um processo marcado por todo tipo de elementos inconscientes e irracionais, por nossos legados de classe, de raça, de gênero. Ninguém é livre de seus interesses no ato de julgar. Ninguém é livre da tradição em que está inserido ao julgar. Tanto o gosto quanto a moral constituem uma espécie de sistema, como que um “dispositivo” de poder de fundo estético. A moral equivale ao gosto no nível do comportamento. Na verdade, não é possível separar um e outro, o moral do estético. Isso quer dizer que em tempos em que a moral não é questionada pela ética (pela preocupação com o outro), ela perde seus limites e se torna autoritária. É nesse momento que podemos falar em moralismo. O senso comum “julga” pelo moralismo que é a exacerbação, caricata e até mesmo autoritária, da moral. No dia a dia vemos isso. Ninguém está livre do senso comum. Nenhum profissional, nenhum cidadão, por mais qualificado que seja por estudos e pesquisas está livre do senso comum. Todos nós estamos enlaçados a ele. Só o superamos, e apenas dentro de limites, quando qualificamos o nosso pensamento, quando aprendemos a duvidar e questionar. Questionar é como abrir uma porta escavada com uma colher em uma cela de concreto na qual fomos colocados pela tradição, pelos hábitos, pelos costumes. Isso quer dizer que o senso comum é uma cela, uma caverna platônica, da qual saímos (muitas vezes para outra caverna), mas à qual voltamos diariamente e não sem sofrer sua influência.
Pensemos nesse ir e vir em relação ao senso comum, quando se trata do trabalho de um juiz. Se o juiz, o profissional que deveria especializar seu ato de julgar e submeter-se à normatividade constitucional, em especial aos direitos e garantias fundamentais, é um cidadão como qualquer outro, não seria ele também afetado pelo senso comum no ato de julgar? O âmbito da espetacularização própria aos meios de comunicação de massa afeta a vida e o senso comum, a ponto de configurá-lo. Isso, por evidente, também afeta a vida dos juízes e seu modo de julgar. Assim, por exemplo, partir do desejo de bem aparecer na mídia, juízes ignoram os princípios que deveriam assegurar o bem julgar.
O cidadão comum julga sem especialização ou qualificação sobre questões da vida. Mais do que isso, em seus julgamento, o cidadão sequer necessita apresentar fundamentações com aparência de adequação ao ordenamento jurídico. Não para por aí. Há uma espécie de delírio do julgamento presente em nossas vidas. O cidadão comum sente-se juiz. Como esse sentimento se constrói? Como essa “auto-autorização” veio a constituir-se? Aposta-se na hipótese de que diante da espetacularização do Poder Judiciário, da presença constante de juízes na mídia, o cidadão comum que sempre se espelhou em heróis e celebridades, passa a ser influenciado também pelo juiz-vedete. Cidadãos autoritários passam a se espelhar em juízes autoritários. Sabemos que a sociedade do espetáculo é uma sociedade mediada e influenciada por imagens. Isso quer dizer que ao ver o modo banal como juízes julgam, muitas vezes em desconformidade com o projeto constitucional e em desconsideração dos direitos e garantias fundamentais, o cidadão tem esse novo personagem para imitar e, ao mesmo, fica feliz ao ver que o juiz togado pensa e julga como ele julgaria.
Tendo isso em vista uma questão que podemos nos colocar é: o que significa “julgar”? podemos considerar evidente que o ato de julgar seja um ato do pensamento que requer uma subjetividade livre, autônoma capaz de discernir, reconhecer e respeitar as diferenças, para, a partir daí, julgar. Somos capazes de discernir hoje em dia? O que pode significar julgar na época do empobrecimento do pensamento enquanto ele é justamente empobrecimento da capacidade de discernir? Que julgamento é possível na era do empobrecimento da subjetividade? Se a subjetividade é um sistema que envolve pensamentos, emoções e ações, não se encontra ela de tal modo esvaziada que todos os seus efeitos podem estar comprometidos?
Marcia Tiburi é Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, graduação em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com ênfase em Filosofia Contemporânea. Pós-doutorado em Artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP. É professora da Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Rubens Casara é Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
Contracorrentes
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