domingo, 24 de abril de 2016
O lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói está acabando
‘‘Todos os vínculos foram explodidos”
O psicanalista Tales Ab’Sáber mostra como o pacto social costurado por Lula se desfez, criando espaço para as forças da direita e atualizando a longa tradição de crise política do País. Ab’Sáber abre a série de artigos, entrevistas e reportagens que debatem o Brasil
Luiza Villaméa
Ab’Sáber: “O lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói está acabando” .
Tales Ab’Sáber é um psicanalista que pensa a política. Professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele é autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica e de Dilma Rousseff e o Ódio Político, entre outros livros. Ao analisar a crise que implode o Brasil e afeta até relações familiares, Ab’Sáber destaca que o período petista, repleto de avanços sociais, acabou por promover uma espécie de congelamento da política, rompido depois que a direita herdou a rua dos protestos de 2013, politizados originalmente à esquerda. “Emergiu um discurso que estava desmobilizado, mas que existia. Olhando de um modo benévolo, houve um descongelamento da política”, afirma o psicanalista. “E a direita casou a crise da corrupção com o ataque à mística lulista.”
Para Ab’Sáber, a reviravolta faz parte do jogo democrático. Daqui para a frente, a direita vai ter de mostrar a que veio, indicar qual a civilização que almeja e controlar as manifestações de ódio em suas fileiras. A esquerda, por sua vez, terá de começar tudo de novo. “No momento, a longa tradição de crise política brasileira produz um estado de transe”, diz Ab’Sáber. “Todos os vínculos foram explodidos.” Há, é claro, muito a lamentar, a começar pela perda de oportunidades no campo da economia e da geopolítica: “Em Cuba, Obama está completando um movimento que Lula começou. O Brasil tinha interesses estratégicos. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido”.
Brasileiros – O que aconteceu com o carisma pop, midiático, do ex-presidente Lula, como retratado em seu livro sobre o lulismo?
Tales Ab’Sáber – Nos últimos anos, houve avanços muito significativos no Brasil. O pacto político bem tramado por Lula juntou forças econômicas do baixo da vida social com o alto da vida social. Foram quatro eleições para presidente da República. Não foram quatro dias. De um certo modo, o tempo petista congelou a política. Esse processo isolou uma dimensão do País, que explodiu no último ano e meio. O pacto do lulismo se desfez. Emergiu um discurso que estava desmobilizado, mas que existia. Olhando de um modo benévolo, houve um descongelamento da política. E a direita percebeu o fenômeno antes mesmo de a Justiça entrar nessa caçada artificial de Lula, nesse processo quase inquisitorial. No Brasil, só Lula viveu isso como político.
Nem Getúlio Vargas?
Talvez tenha alguma semelhança com Getúlio Vargas. Uma pressão de todos os lados para cima do governo, que em Getúlio passava fortemente pelo Exército. Dessa vez, nessa crise toda, o Exército foi impecável. Não piscou. Manteve a posição que sempre deveria ter mantido no Brasil. É uma conquista. Agora, voltando ao ponto, a direita percebeu que precisava corroer a mística lulista.
Como fez isso?
De um modo bastante hábil. Os grupos que movimentaram essas ações de direita são organizados. Desde o começo do ano passado, se organizaram de um modo quase profissional. Eles têm várias camadas de textos. Casaram a crise da corrupção com o ataque à mística lulista. Sabiam que quanto mais gente colocassem na rua, maior seria a repercussão na mídia. E conseguiram fazer esse movimento, essa bola de neve. Gente na rua, grandes grupos de mídia, mais gente na rua, mais mídia. O movimento social foi na frente.
Quando surgiu?
Essa direita se apresentou pela primeira vez na crise de 2013. Ela herdou a rua do movimento originalmente à esquerda, feito pelos jovens que faziam política independente, também sem líder. O Movimento Passe Livre disparou um processo, politizado à esquerda, de demandas socializantes mais fortes do que o governo. Em seguida, a direita entrou no mesmo processo, com ações políticas independentemente de partidos. Há algo de bom nisso. Significa uma cidadania política mais estruturada.
Não é estranho que 27 anos depois da queda do muro de Berlim, o Brasil esteja dividido entre direita e esquerda?
É muito estranho, mas temos que admitir que essa estranheza se construiu também sobre as ambiguidades do que estamos chamando de esquerda, o campo lulopetista. Esse campo tem um movimento estranho e não pensado. Em uma face, opera de modo a convocar as contradições sociais do Brasil. Na outra face, opera com os interesses do grande capital. Está inclusive sendo processado por causa do seu vínculo com o grande capital. O que passamos a chamar de esquerda não é uma esquerda tradicional. É uma espécie de social-democracia mínima. A falência política desse projeto se deu pelos lugares arcaicos. O pacto com as grandes empreiteiras não foi feito pelo PT. Desde a criação de Brasília, o Estado e as grandes empreiteiras estão misturados. O PT embarcou nesse barco. O curioso é que houve um movimento próprio da democracia que cobra do PT, como se o PT tivesse feito isso.
Tivesse criado o pacto com as empreiteiras?
Isso é uma mentira ideológica. O barco sempre esteve aí. Um dos problemas da esquerda brasileira foi ter aceito o barco. Esse é um problema político. A esquerda não consegue pensar sobre o vínculo político com o que há de arcaico no Brasil, que serviu fortemente para o PT durante quatro eleições.
Serviu no sentido de financiar campanha?
Esse é um aspecto. É o aspecto que está sendo criticado. Mas acredito que serviu mais para estabilizar a entrada do grupo de homens ligados a Lula e dos sindicalistas ligados ao PT no condomínio do poder brasileiro. O fato de não contradizer a tradição política brasileira foi um dos elementos que deram força política para Lula nos seus dois mandatos. Então, não era apenas a questão do dinheiro envolvido. Era a questão de que o PT não desestabilizaria o jogo do Brasil.
Abriu até portas para a atuação das empreiteiras em outros continentes, como na África.
Essa era a hipótese de o governo, através desse pacto entre Estado e empreiteiras nacionais, construir grandes empresas globais, de tentar colocar o pequeno capital brasileiro em uma escala mundial. Esse, dizem, é o ponto desse projeto que teria cruzado grandes interesses americanos. Não temos nenhum documento sobre isso. É algo a ser investigado. Pode ser teoria conspiratória, paranoica, para explicar a nossa própria falência interna e digerir esse processo.
De qualquer maneira, o presidente Barack Obama acaba de visitar Cuba. O Brasil investiu na ilha e quem aparentemente vai se beneficiar da abertura são os Estados Unidos.
Esse é um elemento trágico. Reflete a limitação da grosseria ideológica dessa nova direita, desse papo de Guerra Fria em 2016. Não tem nenhum cabimento. É delírio total, mas é delírio interessado, que produziu energia social para derrubar o governo. Não tem vínculo com a realidade, mas funcionou como linguagem e produziu força política. A força desse delírio, que não corresponde a nada, é real. Ela convocou massas para a rua, virou força política. Isso fala do nosso atraso, não fala de nossa capacidade de entender o mundo contemporâneo. Obama está completando um movimento que Lula começou. O Brasil tinha interesses estratégicos. O investimento no porto de Cuba permitiria ao Brasil ter uma posição geoeconômica, geopolítica, muito importante. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido. Elementos ideológicos arcaicos que produziram um movimento para destruir o sistema da política petista destruíram também os elementos progressistas de desenvolvimento.
Como a figura de Dilma Rousseff contribuiu para isso?
O problema é complexo. Mostra a importância da personalidade do político em um processo democrático em que os homens estão disputando o lugar de liderança em um jogo de forças muito complexo. Do mundo de Lula para o mundo de Dilma ficou muito claro que a personalidade e as possibilidades psíquicas do líder contam enormemente no processo da política. A diferença de Lula para a Dilma é extremada. É de 180 graus. Eles são de esquerda, tinham o mesmo projeto, estavam em uma mesma construção macroeconômica, macropolítica, mas o modo de operar a política era diametralmente oposto. O problema da presidente tem uma série de aspectos. O principal é que a presidente sempre operou a política como uma tecnocrata, uma burocrata, uma pessoa que dá ordens, que está acostumada a uma posição de poder que é própria da burocracia, própria da estrutura de mando e de decisão direta. O campo da política envolve construções mútuas de consenso, de posições aproximadas. A presidente Dilma nunca foi capaz de fazer isso. Evidentemente ela agia de boa-fé, mas tinha tanta certeza de seu projeto e tinha um elemento arrogante de ser melhor e superior aos outros que acabou produzindo o seu isolamento. É triste dizer isso. Nesse sentido, o maior erro político de Lula, na minha opinião, foi a invenção política da presidente Dilma. Ela não é uma política. O PT tinha várias alternativas possíveis para esse lugar da sucessão do Lula.
Será que Lula não quis sombra?
Ele não quis nenhum outro político operando o grande poder. De algum modo, ele quis poder demais. Aconteceu o trágico, a Húbris dos gregos, que é quando os heróis desafiam os deuses. Quando o herói desafia os deuses, o próximo passo é sua ruína. É um mito grego, mas aconteceu com Lula.
Em vez de Dilma, quem ele poderia ter escolhido?
Uma pessoa interessante, que poderia ter um destino completamente diferente, é Marta Suplicy. Ela não saiu do PT porque é uma louca desvairada ou porque quer o poder a qualquer custo. Ela viu fechadas as portas. Ao mesmo tempo, tem força para construir um caminho próprio. E no PT tem ainda outros nomes, como Tarso Genro. Vários outros poderiam ocupar o espaço com habilidades e experiência de político. Não quer dizer que não fossem levar porrada, que não tivessem dificuldades imensas com a crise econômica. Mas o modo duro e difícil da presidente não conseguiu aquilo que Maquiavel fala em O Príncipe, que é aumentar o seu poder e integrar a sua comunidade. A ação do político deve visar isso. A presidente trabalhou de um modo que ficou totalmente sem poder. Já faz quase um ano que ela está sem poder.
Quando se referiu a Dilma Rousseff, você usou o verbo no passado. Para você, o governo dela já acabou?
O governo acabou em junho, julho do ano passado. O esvaziamento do lugar do governo na política brasileira não aconteceu agora, nas portas do impeachment. O impeachment é o resultado, trabalhado pela direita, desse esvaziamento do governo, que aconteceu paradoxalmente quando ganhou a eleição. É impressionante o modo como o PT entrou para o quarto mandato, como se não tivesse força nenhuma. É incompreensível a descoordenação no Congresso. O PT fez a maior bancada de deputados no Congresso. Como o PT não teve nenhuma condição de produzir efeitos a favor do governo no Congresso? Não teve. Sofreu derrotas simbólicas, humilhantes, para Eduardo Cunha e a nova direita organizada ao redor dele.
A própria eleição de Eduardo Cunha foi resultado de um embate controverso.
Mais uma vez, má política. Dilma não percebeu que não tinha força para vencer o inimigo e aumentou a força dele. Botou o inimigo em um processo agressivo contra ela. Na política, quem vai perder uma parada não joga todas as fichas nela. Tenta pelo menos tirar alguma energia do processo. O governo perdeu todas as fichas, o tempo todo. Não acho que isso seja só uma crise da presidente Dilma. É uma crise do PT. A presidente Dilma tem grandes dificuldades políticas, mas o PT estava completamente desorgânico nesse processo. O PT precisa fazer uma autocrítica e entender onde perdeu o pé do mar do processo político. Ele se afogou e isso já faz tempo. Já faz mais de um ano.
Como o mensalão contribuiu para isso?
O mensalão contribuiu muito. Não porque tenha existido, mas porque foi o momento histórico em que o PT teve a oportunidade de alterar esse processo. Foi um momento em que o Lula ainda tinha força. Foi a denúncia do pacto do PT com os mecanismos tradicionais brasileiro de corrupção, que não foram inventados pelo PT, mas aos quais o PT aderiu, por poder. O PT errou gravemente e Lula estava dirigindo o processo. Em vez de politizar o problema à esquerda e de revelar a estrutura corrupta brasileira e criar mecanismos, propor uma reforma que interviesse nisso, o PT demandou a impunidade tradicional da direita. E descobriu que, para ele, essa impunidade não vale. Isso é dialético. Na medida em que não vale para o PT, a partir daqui passa a não valer para a direita também. Não é por acaso que nesse panorama de crise radical, os tucanos estão quietos. Não é por acaso que Aécio Neves e Geraldo Alckmin começam a ser vaiados nas ruas. Sabe-se que o PSDB está envolvido em esquemas idênticos. O próximo passo deve ser a hora da direita.
Na sua opinião, em 2005 o PT deveria ter assumido a própria corrupção e exposto a dos outros partidos?
Assumir a própria corrupção, expor o estado geral de corrupção e ser protagonista da reforma que o País estava pedindo. Só o PT poderia fazer isso, porque Lula estava forte. E porque Lula construiu o seu lugar político como crítico à corrupção brasileira. Tinha toda a legitimidade para fazer isso. Era uma jogada complexa, mas mudava completamente a posição de ser aquele político tradicional brasileiro, que é pego em esquemas de desvio de dinheiro público, fica negando, e espera controlar a Justiça para apagar o processo. Nesse sentido, há algo de verdade na crítica da direita. Isso reproduz o velho Brasil. O que não é verdade é a direita dizer que não participa disso. Ela participa. O problema é que o PT não pôde revelar esse processo do Brasil e ser protagonista disso. Ele virou objeto desse processo e não sujeito.
Nesse meio tempo, aflorou no Brasil um ódio impressionante. Esse ódio é inerente a um País com passado escravocrata? Estava camuflado e aflorou agora?
Esse ódio contemporâneo precisa ser bem entendido. Ele não é 1964. Ele não é a posição antissocial e antipopular da formação escravocrata do Brasil. Mas ele também é. Há uma dialética interna complexa desse ódio de 2016, porque os elementos modernizantes precisam ser compreendidos. Essa direita está olhando para os Estados Unidos. A vanguarda desse movimento à direita propõe que o processo social passe completamente à margem do Estado, que o Estado reduza radicalmente a sua ação na vida social e econômica. É um neoliberalismo apaixonado, acreditando que há no Brasil tanto capital. E que o capital pode dar conta da vida social. Essas pessoas estão iludidas.
Isso não acontece nos Estados Unidos?
Acontece, embora o governo americano, em um modo diferente, em uma escala diferente, seja um governo bastante intervencionista, principalmente no mundo. Ele é muito intervencionista a favor do seu mercado. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos há uma longa tradição de sociedade de mercado em que o mercado tem poder suficiente para se equiparar ao Estado. Não é o caso brasileiro. Todas as vezes que se tentou afastar o Estado do espaço da construção da nação, principalmente no governo Fernando Henrique, não aconteceu nada. O País simplesmente parou, porque o capital brasileiro não ocupou o espaço. Ele não tem poder de organizar a vida social. Ele é dependente do Estado. E neste jogo há essa zona perversa em que o capital e o Estado se misturam, se confundem, que é o campo da corrupção. Voltando ao ponto, essa direita tem elementos hipermodernos. Ela imagina que o Brasil é os Estados Unidos. Dizem que são superliberais, que não têm nada a ver com a escravidão, com o autoritarismo brasileiro. Não é bem verdade. No mesmo campo, existem pessoas inteiramente autoritárias. Existe a tradição de desprezo e violência em relação à vida popular brasileira. Isso precisa ser acompanhado e controlado politicamente, assim como as intensidades odiosas, antidemocráticas, que habitam a nova direita também.
Não é muito grave o fato de as pessoas não poderem usar vermelho sem correr o risco de serem agredidas?
Qualquer risco de ser agredido é muito grave. Que esse pessoal tenha começado a espancar pessoas, a calar pessoas, e eles fazem isso, é muito grave. Seria importante que os elementos democráticos e liberais do movimento criticassem a sua própria violência. Afinal de contas, quem eles são? Eles são hiperliberais ou são autoritários que querem tomar o poder? Daqui para a frente, se realmente o governo entrar em uma crise terminal, esse movimento vai ter que explicitar qual a civilização que eles pretendem para o Brasil.
Ou qual a barbárie.
Ou qual barbárie. Eles deram um golpe de força para derrubar um governo legítimo. São responsáveis pelo que criarão. Nesse sentido, precisamos fortificar a democracia. Só a democracia pode ler esse processo. Qualquer grupo autoritário quer apagar os instrumentos de leitura, que são as leis, a imprensa, os instrumentos de acompanhamento e avaliação. Daqui para a frente são esses caras que vão ter que responder pelas suas ações, pelas suas posições, se eles são antissociais, se eles são antidemocráticos, se são antipopulares. Até agora eles só acusam a esquerda de ser corrupta. Mas quem são eles?
No âmbito pessoal, pode ter havido nos últimos tempos um afrouxamento da compostura por parte de manifestantes?
Quando pessoas elegantes descem no nível da massa, elas viram massa. É o psiquismo de massa, é o mesmo que vai para o futebol, onde também se grita contra o torcedor, o inimigo. Esse desrecalque dá prazer, mas não há dúvida de que ele é violento. Existe inclusive toda uma estratégia para ocultar essa dimensão violenta, antissocial, antidemocrática que é muito forte nessas manifestações. No entanto, isso é a conversão do indivíduo em massa. É a conversão psíquica, que dá prazer. É desrecalque. Ao mesmo tempo, essa expressão violenta é energia política. Esse ódio, que no limite seria sadismo, é o campo arcaicíssimo da guerra, em que o inimigo é o inteiro mal e há liberação para destruí-lo. A guerra libera pulsões arcaicíssimas e primitivíssimas. Cada um precisa sobreviver por si mesmo. Esse movimento foi no limite disso. Não é por acaso que começaram a perseguir e espancar algumas pessoas também. E a calar.
Batendo panela?
Uma das estratégias mais fortes nesse momento foi calar a voz do inimigo. No Brasil, as panelas não foram utilizadas como na Argentina, no Chile. Lá elas sinalizavam que as panelas estavam vazias. Era a comunicação de um mal-estar. No Brasil, as panelas sempre foram utilizadas para calar a fala da presidente. É um outro lugar. É a última mediação. Bate na panela porque não pode bater na pessoa. É uma ação política de calar. Essa direita tem uma longa tradição autoritária. Uma parte desse pessoal fez uma ditadura de direita de 20 anos, com tortura, com desaparecimento de pessoas, com censura. O que uma parte desse grupo produziu no Brasil não foi um parque de diversão.
Essa nova direita tem líderes?
Na verdade, são vários grupos jovens. É uma politização forte à direita, uma coisa que a esquerda há muito tempo não conhecia. São apaixonados, e organizados de modo semiprofissional ou profissional. Uma das coisas interessantes seria pensar quem financiou esses processos, porque esses processos foram muito trabalhados.
Como?
Ainda não está claro o vínculo com grupos liberais de direita brasileiros e com americanos também, que pagam para que movimentos desse tipo se produzam no mundo. É uma privatização do que a CIA fazia antigamente. Hoje think tanks de direita fazem. É um movimento político mundial. Existe. A esquerda tem que conhecê-lo, denunciá-lo. Nesse sentido, não tem liderança, mas tem muita organização. Organização quase profissional, burocrática. Eles têm jornalistas, assessor de imprensa, publicitários.
Financiamento também?
Financiamento, grupos de interesse, mas existe uma paixão política também. Tem muito a ver com o Tea Party americano. Nos Estados Unidos, em um nível ainda mais radical do que aqui, esse movimento é a direita do Partido Republicano, que está dando em Donald Trump. Nos Estados Unidos, é um perigo.
E aqui?Precisamos ver. Por enquanto, só tem a ação negativa de destruir um governo. Não sabemos o que esses caras são no poder, porque eles inclusive são muito divididos. Tem a parte mais arcaica, autoritária, desse pessoal, que apoia Jair Bolsonaro, mas parece que são no máximo 10%. E tem os neomercadistas, os novos jacobinos do mercado (os radicais do mercado). Esses caras evidentemente não podem apoiar Bolsonaro.
Podem apoiar José Serra?
Eles tendem para o PSDB, que tem uma tradição neoliberal no Brasil. Mas eles também criticam o PSDB. Acham que o PSDB é muito estatista e que faz parte do arcaísmo brasileiro. Eles também têm um projeto civilizatório próprio, que é em grande parte ilusório. Uma certa faceta pode ser autoritária e violenta.
No poder, representam ameaça aos avanços sociais do governo Lula?
Não só aos avanços sociais do governo Lula, mas aos avanços sociais da Constituição de 1988. Há uma tendência hiperliberal de criticar os estabelecimentos constitucionais de que o Estado tem que investir em educação, em saúde, principalmente em saúde. Seria um ataque à Constituição. Mas já há uma tendência geral, inclusive dos governos, de fugir dos compromissos de investimento social previstos pela Constituição de 1988. Esses caras já andaram falando que é arcaísmo o Estado ter que pagar por essas coisas, na mesma hora em que nos Estados Unidos existe um discurso à esquerda, que diz que o Estado tem que pagar mais por essas coisas.
Quais as perspectivas para o futuro?
Com a corrosão da mística lulopetista, que a direita estrategicamente conseguiu produzir, as pessoas precisam reinventar o circuito da esquerda. Há muitos que não apoiam exatamente o governo petista e da presidente Dilma, mas que entendem que o processo de impedimento do governo é ilegal, forçado politicamente. O problema é que ele é forçado politicamente, mas não é inteiramente ilegal. Eles abriram um processo de
impeachment no Congresso baseado em um pedido de setores da sociedade, baseado em erros do governo. Não podemos chamar de golpe. Isso é política na democracia. A direita está forte porque a esquerda ficou fraca. E como a esquerda, depois de quatro Presidências da República está tão fraca? Corrupção é o grande tema jurídico legal, mas agregada à corrupção está a ideia de que o governo Dilma é inepto para governar o País.
O que por si só não justificaria um impeachment.
De jeito nenhum. O inepto, temos que aguentar. Podemos fazer movimento político, mas temos que lidar com ele. Há elementos ilegais. Só que as pedaladas fiscais também não justificariam, porque elas são clássicas de governo. O problema está no fato de que se criou uma máquina de poder e corrupção gigantesca na Petrobras. De qualquer forma, está acabando o lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói, que ao mesmo tempo era um patriarca dos pobres e uma máscara para vários interesses das elites progressistas que se articulam a esse herói. Esse grande movimento de uma política messiânica está acabando no Brasil. A esquerda vai ter de aprender a existir sem essa estrutura antiga. Essa é uma estrutura do passado da América Latina, das estratégias de chegada ao poder por meio da liderança hiperinvestida. A esquerda tem que se pensar como movimento social. Nesse sentido, a direita está na frente. Eles estão se organizando, vão fazer institutos, vão fazer ações em vários níveis da cultura.
A saída para o lulopetismo é começar de novo?
É reorganizar a esquerda nesse quadro contemporâneo, que não é mais aquele que fundou o PT e deu a energia social para Lula. No momento, a longa tradição de crise política brasileira produz um estado de transe. Diferentemente de momentos revolucionários, em países centrais e desenvolvidos, há uma fragmentação das vozes, uma fragmentação da leitura da realidade. O resultado dessas crises políticas muitas vezes tende a ser regressivo. Em vez de ser uma revolução progressista, é conservadora.
Esse seria o fato novo dessa crise?
Esse é o estado de transe do Brasil. Essa crise atualiza o transe. É aquilo que Glauber Rocha viu no Terra em Transe. Vozes soltas, que não se encontram. Por causa da estabilidade da nova democracia, esse transe tende a ser incorporado em um processo novo. Uma certa estabilidade deve permanecer quando o pacto político e a falta de integridade simbólica nacional explodem todos os vínculos. Foi o que aconteceu agora. Todos os vínculos foram explodidos. A própria direita que está na rua são muitas direitas. Estamos no velho transe brasileiro. Talvez a novidade seja uma integridade institucional, que permita atravessar o processo.
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