segunda-feira, 18 de abril de 2016
A hora da ira
Por Flávio Aguiar, de Berlim.
Ontem, atravessando a madruga em Berlim, devido ao fuso horário, assistindo ao deprimente espetáculo que a Câmara de Deputados proporcionou – não a mim – ao mundo inteiro, me assomou a lembrança de Castro Alves, no “Navio Negreiro – Tragédia no Mar”:
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
…
Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
…
Auri-verde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as divinas promessas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis à lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!
Não sei o que aquela escória comandada por Cunha está pensando. Em termos éticos, não importa. Eles arrastaram o Brasil à vergonha universal. Não tenhamos ilusões: somos motivos de chacota pelo mundo inteiro, inclusive nas imagens das vivandeiras de ocasião lavando lágrimas de crocodilo na nossa bandeira, que percorrem as primeiras páginas de todo o mundo.
O que importa é pensar no que está por trás disto. Não me refiro à mídia golpista. Ora, ora, ela cospe todo o santo dia na bandeira brasileira. Não me refiro à coleção de gângsters que invocava o nome de filhos, mamães, papais, médicos, para cometer o ato assassino de condenar uma presidenta honesta. Eles cospem na própria memória todo o santo dia. Também não me refiro aos capitalistas malignos (porque, apesar de tudo, há os que não são), que esfregam as mãos pensando no quanto mais vão arrancar do nosso povo – classe média iludida aí dentro.
O que me vem à mente é a corriola de idiotas que a face empresta p’ra cobrir aquela infâmia que ontem ocorreu, sob as mais variadas máscaras. As máscaras corporativas, as máscaras supostamente éticas que, em nome de arrepiar a corrupção, convivem com os Al Capones do Congresso como se isto fosse o normal da vida, em nome de apresentarem uma fachada de probidade, admitem chafurdar no pântano das falsidades. Preferem isto a botar em risco os seus privilégios, que pensam ser direitos in natura, como se direitos não fossem universais, mas atestados de nascença reservados em cartório.
Fico pensando onde esta gente estará. Pode ser no círculo infernal de Dante destinado aos hipócritas. Vestem roupas de cores brilhantes e bonitas, mas que pesam como chumbo, e que os impedem de se movimentar. Ou quem sabe estarão no círculo onde os condenados têm a cabeça voltada para trás, não conseguindo nunca olhar para frente, o que os faz contundir-se constantemente. Ou ainda podem estar no círculo dos corruptos, mergulhados no pixe fervente, ou na própria merda: se levantam a cabeça, são impiedosamente espancados pelos demônios, para que mergulhem de novo no poço ignominioso de sua submissão. Ou então, e muitos estarão neste plano, ficam detidos no portal do Inferno, perseguidos por mutucas e vespas implacáveis. São os que não pecaram por serem tão covardes que nem a isto tiveram coragem de chegar: são os omissos, os “deixa pra lá”, os “isto não é comigo”, que tanta alegria fizeram aos Hitlers, Stalins, McCarthys e – por que não dizer – aos pequenos Cunhas da vida.
Que a terra não lhes seja leve, nem o pó do esquecimento os perdoe.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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