sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Carpeaux sobre Fernando Pessoa




Grande e decisiva parte da obra poética de Fernando Pessoa é anterior a 1927, ano em que esse sobrevivente de Orfeu, amigo de Sá-Carneiro e discípulo de Camilo Peçanha, fundou, com João Gaspar Simões, José Régio e outros, a revista Presença. Foi mais um movimento efêmero.

Mas nunca poderá ser esquecido. Pois Fernando Pessoa não foi só um grande poeta: foi um dos poetas mais singulares de todos os tempos. Só muito depois de sua morte, sua riquíssima produção poética, espalhada em revistas efêmeras, foi reunida e editada.

Ele mesmo, revelando e ocultando ao mesmo tempo as facetas contraditórias da sua personalidade, só publicou o volume Mensagem, em que o poeta moderníssimo e céptico irônico celebra a mística fé sebastianista do povo português. Livro que recebeu a honra duvidosa de um prêmio de propaganda nacionalista, e que constitui, por isso, escândalo para alguns admiradores do poeta. Explicando, alegam que ele sempre foi mistificador: perito em contabilidade e astrólogo apaixonado, céptico sutilmente subversivo e ocultista suspeito. Pessoa chegou a publicar grande parte das suas poesias sob pseudônimos, ou antes – como preferiu afirmar – heterônimos, quer dizer, atribuindo-as a outras pessoas da sua invenção gratuita, inventando-lhes biografias completas: Alberto Caeiro, o autor do Guardador de Rebanhos, de inspiração repentina e torrencial; Ricardo Reis, poeta classicista, algo semelhante a Landor; Álvaro de Campos, autor de odes whitmanianas. A poesia do próprio Fernando Pessoa, quer dizer, aquela pela qual assumiu a responsabilidade, assinando-a com o verdadeiro nome, tem pouco de hermético. Trata-se de poesia sentimental, conforme as mais antigas tradições portuguesas, embora na linguagem simbolista de Camilo Peçanha – “Pobre velha música tradicionalismo que culmina ideologicamente em Mensagem, livro ainda não devidamente apreciado, de inédita riqueza metafórica. A sinceridade desse tradicionalismo seria duvidosa se o subversivo “Alberto Caeiro” não fosse realmente “outra pessoa” – Fernando Pessoa conseguiu a realização do “Outro”, tarefa que quebrou o espírito de Sá-Carneiro. O “Outro” do humanista “Ricardo Reis” é o futurista whitmaniano “Álvaro de Campos”, autor de Vem, Noite Antiquíssima... e da grande Ode Marítima. Onde está, então, o “verdadeiro” Fernando Pessoa?

“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos...” 

Dos resultados contraditórios de sua introspecção psicológica fugiu para o sonho intencional –


“Tudo é ilusão,
Sonhar é sabê-lo...” –

para um conceito intemporal do tempo, no qual passado e futuro se confundem:

“E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.”

Tradicionalista e satanista, céptico e ocultista, Fernando Pessoa cristalizou em personificações suas possibilidades, sua “disponibilité”. “Dramatizou-se”, dividindo-se em personagens. O processo lembra os pseudônimos aos quais Kierkegaard atribuiu a autoria dos seus livros. Mas Fernando Pessoa está longe da fé absoluta e do romantismo hoffmanniano do pensador dinamarquês. Antes convém lembrar as máscaras daquele outro grande poeta-ocultista que foi Yeats; porque vale a pena lembrar as raízes simbolistas da arte de Fernando Pessoa. Com efeito, é ele o verdadeiro grande simbolista português. Tem afinidade tipicamente simbolista com a música. Até sua teoria do “poeta que é fingidor” e da poesia como arte de “cantar emoções que se não tem” lembra o músico que parece, ao ouvinte, afogar-se em emoções, enquanto na verdade conta exatamente os compassos. A poesia de Fernando Pessoa tem mesmo a qualidade intemporal da música:

“Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Dissessem.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por que esperar?
Tudo é sonhar.”


O mundo ainda não tomou conhecimento dessa arte. Mas Fernando Pessoa pode esperar.

Otto Maria Carpeaux - História da Literatura Ocidental, Parte X. Cap. I- As revoltas modernistas



Pombo Navegante

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