A questão das liberdades civis e do reconhecimento dos direitos humanos no Irã (e por extensão em todos os países muçulmanos) impõe um debate bastante duro e sério sobre o convívio entre as civilizações no mundo moderno.
Francisco Carlos Teixeira
A opinião pública ocidental, vários líderes e organizações humanitárias, organizaram-se nos últimos meses visando evitar o cumprimento da pena de morte – por lapidação (quer dizer, apedrejamento)! – da iraniana Sakineh Mohamadi Ashtoiani. Um processo em torno de um crime aparentemente passional, de direto comum, tornou-se uma fonte de tensões internacionais e de (mais um) descrédito do governo islâmico (xiita) de Teerã.
Como se constituiu o caso Sakineh?
Trata-se de uma mulher de origem azeri – uma etnia de origem turca comum no norte do Irã – nascida em 1967 e que foi acusada, inicialmente, de adultério. Mesmo sendo viúva, Sakineh foi condenada por imoralidade e relacionamento ilícito por manter relações – após a morte do marido – com dois homens. Tal “crime” resultou na condenação a uma pena de 99 chibatadas, pena que já foi aplicada pelo tribunal da cidade de Tabriz (norte do Irã), no processo iniciado em 2006.
Neste mesmo ano, em virtude do julgamento dos dois homens com quem Sakineh teria mantido “relações ilícitas”, surgiu a acusação de que as relações teriam sido mantidas durante a vida do marido e que a mesma Sakineh teria planejado com um dos supostos amantes o assassinato do marido. Aparentemente a “confissão” do homem – a única fonte de acusação contra Sakineh – deveu-se a uma negociação com o próprio tribunal visando aliviar as penas propostas contra ele.
Sakineh foi novamente presa. Em um rápido julgamento a mulher azeri assinou um documento confessando tanto o adultério como a trama para o assassinato. A corte então a condenou a morte por lapidação – uma antiga pena de morte vigente no Oriente Próximo antigo e revalidada pela Charia (o código de penas do Islã medieval colocado em vigência pelo fundamentalismo xiita – no Irã – e sunita – como com os talibãs no Afeganistão).
A Charia marca uma indeterminação e não separação entre o Estado e a religião, estabelecendo regras de ação para a Justiça baseadas em princípios religiosos, mesmo para as minorias não-muçulmanas existentes no país (como é o caso de cristãos e de zoroastrianos no Irã). As bases da Charia residem no próprio Alcorão e na tradição consolidada na história do Islã, a chamada Suna. Assim, a lei aplicada é considerada de origem revelada, divina, não cabendo um processo de reforma ou aggiornamento, tão comuns nos códigos de leis do Ocidente.
Um Julgamento em julgamento:
Aí é que surgem os problemas, de duas naturezas. Em primeiro lugar o julgamento em si: Sakineh é azeri, uma minoria no Irã, não entende e não lê farsi (a língua persa oficial no Irã). Assim, seu direito de defesa, o entendimento do que se passava na corte, foi claramente cerceado, impedindo-a de ter uma visão completa das acusações vigentes contra ela e da natureza do documento que era levada a assinar. Por outro lado, o advogado de defesa contratado, Mohammad Mostafei, não pode apresentar uma defesa adequada, sendo perseguido pela polícia, sua casa invadida, sua mulher e sogro presos. Por fim, Mostafei fugiu para a Turquia.
Este procedimento da Corte contradiz os ritos e a prática da Justiça em qualquer país moderno e institucionalmente regulado. Não só a acusada não pode se defender, como o seu defensor foi perseguido e colocado, com sua família, em grave risco. Para todo efeito legal houve claro cerceamento do direito de defesa.
Um segundo grupo de problemáticas é a natureza cruel, exacerbada, da própria pena imposta a Sakineh, emanada da Charia. Sabemos que não cabe a nenhuma instituição internacional, país ou ONG questionar as leis de outro país e tecer sobre elas considerações culturalistas. Contudo, a própria natureza da pena – a lapidação – é claramente cruel. Sua imposição revela um desejo de vingança por parte do Estado e não de correção de erro, exemplo ou correção e readaptação da pretensa perpetradora.
A perseguição de minorias:
Este, em verdade, tem sido o comportamento da Justiça iraniana, fortemente imbuída da Charia. Assim, por exemplo, os gays iranianos têm sido vítimas de punições crudelíssimas, como o apedrejamento, a imolação por fogo e forca. Em agosto de 2007, por exemplo, Pega Emanbakish, uma mulher de 40 anos, lésbica, conseguiu fugir do Irã para o Reino Unido depois que sua parceria foi presa, chicoteada e depois apedrejada. Este foi o mesmo destino do jovem Makwan Maloudezedh, de 21 anos, condenado a forca no mesmo ano, após o cerimonial público das chibatadas.
A Agência de Notícias dos Estudantes Iranianos (Isna) informou uma execução ocorreu no dia 19 de julho de 2007, quando os jovens M.A. e A.M., dois supostos gays entre 16 e 18 anos, foram enforcados na Praça da Justiça, na cidade de Masshad, no nordeste do país. Ainda segundo a notícia antes de serem mortos, ambos ficaram presos durante 14 meses e cada um recebeu 228 chibatadas.
Como a reação mundial foi bastante negativa a Justiça iraniana passou a fazer execuções secretas, de forma que a imprensa mundial não tenha mais acesso aos casos. De qualquer forma, as mortes continuam.
Assim, a reação do presidente Ahmandinejadi ao Caso Sakineh (em especial em resposta ao pedido de clemência feito por Lula da Silva), afirmando que se trata de um crime comum e não de um caso de direitos humanos, é chocante por seu cinismo. O que ocorre hoje no Irã é uma perseguição sistemática a toda e qualquer conduta desviante ou manifestação de alteridade. Quando o comportamento desviante envolve mulheres e minorias a ação do Estado islâmico é ainda mais brutal.
Assim, as seguidas violações do processo eleitoral do país, a prisão e perseguição da oposição (incluindo a própria oposição islâmica) e a constante violação dos direitos civis soma-se a repressão sexual e o abuso constante contra as liberdades individuais no Irã.
O caso mais notório foi do cineasta, reconhecido mundialmente (ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza, em 2000, e o Urso de Prata, em 2008 no Festival de Berlim), Jafar Panahi preso sob a acusação de dirigir filmes “anti-islâmicos” e contra o Estado. Na verdade, Panahi, de 49 anos, estava dirigindo um filme sobre o processo eleitoral iraniano em 2009, quando a oposição foi duramente reprimida e os resultados manipulados pelos partidários do Presidente Ahmandinejadi. Depois de uma penosa greve de fome e de protestos mundiais (de Juliette Binoche até o chanceler Celso Amorim), Jafar Panahi foi libertado em maio de 2010.
Etnocentrismo e Direitos Humanos:
A questão das liberdades civis e do reconhecimento dos direitos humanos no Irã (e por extensão em todos os países muçulmanos) impõe um debate bastante duro e sério sobre o convívio entre as civilizações no mundo moderno. Alguns teóricos, políticos e lideres religiosos, esgrimem argumentos tomados de alguma forma do grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, ao denunciarem um certo imperialismo cultural, ou mesmo civilizacional, do Ocidente. Residiria aí um grave risco de homogeneização e de imposição de um pensamento único, processo reforçado depois do advento da Globalização, contra as especificidades culturais de outros povos. Assim, a diversidade cultural poderia estar ameaçada a partir de uma visão única partindo do grupo de nações mais ricas e mais poderosas do Ocidente. Tratar-se-ia aqui de puro e simples etnocentrismo, considerando alguma cultura especifica como atrasada.
Já outros teóricos e políticos, buscando seus argumentos no filósofo alemão Jürgen Habermas, defendem a natureza comum, primaria, da dignidade humana. Assim, a opressão a alguém em algum lugar seria sempre a opressão contra a humanidade. Fatos sociais como o abandono dos bebe-meninas na China, a circuncisão feminina em alguns países muçulmanos e a repressão contra as mulheres ou minorias sexuais no Afeganistão, Irã ou Camarões seria, de qualquer forma, uma agressão aos diretos humanos.
Em resposta, o governo iraniano reagiu, e mantêm esta posição, de que o Caso Sakineh é um problema interno iraniano e que não se trata de violação dos direitos humanos. Trata-se do puro exercício da Justiça iraniana no Estado soberano do Irã.
Contudo, mesmo no interior das nações muçulmanas existe, hoje, uma ampla disputa sobre a natureza e aplicação da Charia – e de sua fonte única no Alcorão e na Suna. Hoje, nas sociedades mais abertas e com formas democráticas de regime político, como na Turquia, Indonésia e Paquistão, os especialistas em direito dividem-se em três correntes: os secularistas, contrários a aplicação da Charia e que defendem a natureza laica do Estado e da Justiça; os tradicionalistas, que querem manter a Justiça baseada exclusivamente na tradição religiosa e os reformistas, que acreditam ser possível conciliar a tradição religiosa muçulmana com as exigências modernas e de um Estado democrático.
Assim, a acusação (fácil de fazer) de “imperialismo cultural” ou de “intervenção na cultura alheia” cai por terra, já que os próprios muçulmanos discutem possibilidades reais de reforma da Justiça e muitos entre eles consideram a aplicação literal de preceitos e regras que se mostram por demais vinculados com o passado como um grave erro.
Carta Maior
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