segunda-feira, 20 de setembro de 2010

“Eu não tenho onde morar”.



Moradia, um direito muito humano

Dora Martins*

O poeta Dorival Caymmi compôs, em 1959 uma bela canção, que em seus dois primeiros versos retrata o princípio da igualdade e destaca a triste desigualdade que impera em nosso país, desde sempre, ao que parece. A canção é a conhecida “Eu não tenho onde morar”. E diz, logo no ínício, assim “ eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu/ todo mundo mora direito, quem mora torto sou eu”. E Caymmi como sensível observador de seu povo, talvez soubesse que sua constatação encontraria eco, por tão longo tempo, na vida de tantos brasileiros.

A moradia, a casa, o desejo de tê-la e o direito a ela é direito humano, fundamental, e garantido em nossa Constituição e em textos universais que a humanidade escreveu para lembrarmos sempre que somos todos, e cada qual, seres únicos, sociais, com necessidade de interação, de vivenciar e conviver com nossos iguais. E temos, dentre todos os direitos fundamentais, o chamado direito à moradia.

Direito esse pouco respeitado neste país, o que dá origem a um dos nossos mais graves problemas sociais e que produz uma profunda injustiça social.

Sabemos todos que a não possibilidade de moradia adequada e digna rompe os laços familiares e é ponto de partida para o processo de falência da dignidade do homem que acaba por ser excluído do meio social. Dentre as previsões assustadoras da ONU, tem-se que, atualmente, quase 1 bilhão de pessoas - um sexto da população mundial vive em favelas. E se tal tendência continuar, esse número vai subir para 1,4 bilhão em 2020 - o equivalente à população da China.

Para tal organização, a comunidade internacional não pode ignorar os habitantes das favelas, porque, depois da população do campo, eles são o maior grupo nos países em desenvolvimento e este número vai crescer na medida em que esses países se tornem mais urbanizados. Até 2030, as cidades dos países em desenvolvimento vão ter cerca de 4 bilhões de habitantes, 80% da população urbana do mundo. Assim sendo, é bastante óbvio que governantes olhem e reconheçam as diferenças entre a favela e outras áreas urbanas na hora de formular suas políticas pública e sociais.

O que não faltam à sociedade brasileira neste século XXI são leis escritas, vozes lúcidas, reclamos legítimos, todos a postos ante um poder público com ouvidos moucos e apenas pouco mais “sensível”, em ano de eleição. É compromisso assumido pelo Estado Brasileiro a defesa dos direitos sociais econômicos e culturais. Ter moradia digna é um direito humano elencado no rol dos direitos sociais do cidadão brasileiro. Pode-se até afirmar que morar é um direito cultural de todo cidadão.

Se sou brasileiro, paulista ou baiano, não importa se corinthiano ou são paulino, da zona sul ou leste, tenho aqui meu lugar, “estrangeiro eu não vou ser”, e aqui quero morar. Um lar, uma casa, uma morada, “quatro paredes sólidas”, não importa o nome que se dê, a casa é espaço físico, emocional, mental e espiritual no qual, com dignidade, deve viver e se desenvolver o cidadão e sua família, a qual é considerada “o núcleo natural e fundamental da sociedade” (artigo 10, 1, do PIDESC).

O Brasil e suas cidades maiores, ainda refletem a injustiça e a marca de nossa origem histórica - colonizados, o mando do rei, do arbítrio da lei em favor do mais forte, do interesse de poucos (e ricos) em detrimento do de muitos (e pobres). Na primeira metade do século passado, acreditava-se que, não na vida no campo, mas nas cidades é que se encontravam a possibilidade de desenvolvimento econômico e os avanços da modernidade. Nos anos 1990 a realidade se mostra crua e outra – sobram nas cidades a desigualdade social, a violência urbana, a vida insalubre ante as diferentes formas de poluição, a estagnação do movimento de veículos e pessoas, a patente exclusão e injustiça social.

A cidade de São Paulo é bom e gritante exemplo disso. As políticas públicas que devem visar o bem estar social, a garantia de morada digna aos cidadãos mais desafortunados, operam em sentido inverso e cruel. Vez e outra, ordens do poder executivo municipal determinam a retirada de famílias de suas casas, ditas irregulares, em exíguo prazo, sem conversa, sem ordem de juiz, sem juízo algum.

Apenas com prejuízo e dores impostas ao povo de classe econômica mais desfavorecida, que se torna, portanto, mais pobre e mais excluído.

No centro de São Paulo existem inúmeros prédios vazios, desocupados, a “garantir” o afastamento da região de parte da população que ali poderia morar e trabalhar. As chamadas ZEIS, – Zonas Especiais de Interesse social – disciplinadas pelo Plano Diretor do município, como áreas de moradia popular, ao que parece, não são consideradas pelo próprio poder publico. Esse jeitinho político-administrativo de tirar a população mais pobre do centro da cidade e obrigá-la a viver na periferia é identificado pelo Defensor Público Carlos Henrique Loureiro, coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de S.Paulo, como “política de higienização do Centro da cidade”.

Do centro vem sendo retirada a população de baixa renda, os “sem teto”, os moradores de rua, os quais são obrigados a buscar alojamento, de modo precário, em áreas de risco, ou áreas públicas, nas quais há questões que afetam o meio ambiente (beiras de rio, mananciais, encostas). A exclusão social de tantos cidadãos fere de morte o conceito e a prática da cidadania. E especialmente, em uma cidade do porte de S.Paulo, o não reconhecimento e proteção e garantia a princípios constitucionais tão caros – a igualdade, o direito de moradia, o direito de usufruir, integralmente, da condição de cidadão – leva à proibição, quase negação, de um direito outro, qual seja, o direito à cidade. O direito de morar dignamente na cidade e ocupar espaços urbanos com legitimidade.

Se vivemos num Estado Democrático de Direito, a cidade tem que cumprir sua função social e permitir a todo e qualquer habitante nela viver e ter atendidos seus direitos de homem e cidadão. Foi também em 1959, época em que Caymmi fez “Eu não tenho onde morar”, que se deu início à construção do Edifício São Vito, modelo da arquitetura moderna dos anos 50. Não por acaso, tal edifício é hoje tido como marco da deterioração do centro antigo de S.Paulo.

E, ao que parece, está frustrada a luta por fazê-lo cumprir sua função social já que ele se localiza na chamada Zeis. E, assim, ao invés de, como prometido, ser restaurado para habitação de cidadãos de baixa renda que trabalham e vivem no centro da cidade, anunciou-se, sob a égide de uma disputa judicial, a sua demolição.

*Integrante da Associação Juízes para a Democracia."

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