amig@s:
Quando ouvia dizer que FHC e o Papa eram comunistas, sorria do evidente absurdo. Aos poucos, entretanto, fui entendendo que havia grupos e movimentos e não tão pouca gente, que sentiram o fim da ditadura como uma derrota. E que não se veem representados no processo que se inicia com o fim da ditadura e tem como referência a Constituição de 1988. Ou seja: não se reconhecem na Nova República e, consequentemente, nos governos FHC e é claro, Lula e Dilma. Não ocuparam postos expressivos em nenhum desses governos além de terem sido inúmeras vezes preteridas em ministérios e instituições públicas. Para eles, voltar décadas atrás é voltar a esses tempos.
Agregaram-se a esse núcleo grupos sociais em forte conflito com os governos, seja a partir de políticas fundiárias adotadas, da resistência que apresentavam a um programa ainda mais repressivo na segurança ou de uma relativa defesa de direitos individuais. A radicalização do conceito de ordem – também agrária e social - cimentou essa aliança. A extrema direita evangélica [que se faz passar pelos evangélicos em geral] que dificultou avanços na legislação relativa aos direitos ligados ao corpo sentiu a possibilidade de passar à ofensiva e integrou-se à articulação. Mais recentemente, sob a cobertura da luta contra a corrupção, juízes e promotores ultraconservadores ultrapassaram alegremente a letra da lei para perseguições e intervenções políticas e desempenharam papel importante nas eleições.
Se o acima dito for correto, há claras consequências. A oposição dos principais grupos que estão à raiz da candidatura Bolso não é apenas política, a governos. Estão em desacordo com a Constituição de 1988. No plano institucional, defendem uma forte proeminência do executivo, visto como o cume de uma cadeia de comando. Veem o Congresso e Judiciário como de menor expressão. Claro que, chegados ao governo por via eleitoral, sabem que deverão negociar com ambos. Mas pensam fazê-lo em seus termos.
Há também outra base para essa proeminência do Executivo: a ligação direta do líder com as massas, a partir de uma forte base militante. O papel dessas bases não está ainda claro. Podem reprimir mobilizações oposicionistas, tentar impor regras morais à população, mas podem também ser um importante instrumento de pressão política [e às vezes miliciana] para aprovação de medidas e sustentação do governo.
Há concepções políticas centradas na democracia, ou no desenvolvimento, ou na cidadania. No mundo Bolsonaro, o centro é o império da Ordem: política, social e moral. Sua legitimidade é divina - Deus acima de tudo. Quem tem a razão vê o debate entre ideias diferentes com maus olhos, pois essas outras ideias não tem legitimidade. Veem o funcionamento governamental – e da própria sociedade - em modo hierárquico. .
O ministério agora nomeado parece dar razão ao dito acima. Forte presença militar, indicações das bancadas BBB e papel secundário aos políticos em geral. Os programas até agora apresentados parecem combinar radicalização liberal na economia – privatização quase generalizada, previdência por capitalização, desvinculação dos gastos sociais no orçamento, arrocho salarial. E importância crescente do setor privado na educação e na saúde. E, sobretudo uma refundação ideológica: proeminência religiosa, reino da ordem e da moral.
Para muitos deles, a principal referência é o período da ditadura militar. Alguns sonham com uma teocracia. Seu contexto internacional é a guerra fria e a luta contra os comunistas. Havia então segundo eles ordem: política, social e moral: homem era homem e mulher era mulher e ambos conheciam seus papéis.
Penso que é preciso entender que o processo de implantação dessa Nova Ordem a partir de uma vitória eleitoral é diferente do que seria numa ditadura militar. O próximo governo começará com maioria parlamentar e apoio popular. O período Temer mostrou que nossas instituições interpretam a Constituição com grande flexibilidade. E contará com apoio das Instituições de Defesa. Pode assim escolher “interpretar” as leis a mudá-las. Mas deve-se esperar um forte processo de aparelhamento da máquina pública e das instituições. Não apenas porque são muitos os apoiadores há muito afastados de cargos mais importantes. Mas porque redirecionar ideologicamente as instituições públicas é seu objetivo estratégico. Buscarão, penso colocar gente de confiança nos postos estratégicos e configurar novas regras e concepções para o serviço público.
Aos adversários políticos reserva-se a perseguição, seja através de seguidas denúncias, prisões e condenações ou de interdições de funcionamento. Reserva-se à atividade sindical o mesmo destino do Ministério do Trabalho. Aos movimentos sociais e políticos, repressão e criminalização. Além de pressão sobre a mídia escrita e televisiva e de “caça as bruxas” no ensino, pesquisa e cultura. Podem combinar cortes de verbas e financiamentos, provocações que levam a processos e criação de um amplo clima de intimidação. Algumas políticas sociais – como bolsa família - poderão ser mantidas. Não se deve subestimar a dimensão populista do novo governo. Mas políticas de promoção como quotas sociais e expansão e qualidade ao ensino técnico, deverão ser esvaziadas. A possibilidade de apoiar-se em “ações pela base” e práticas milicianas é outro claro diferencial entre direita e extrema direita.
Há hoje setores políticos que apostam que Bolso abandonará seu ideário ideológico e se concentrará na ação política. Como sabemos, a maioria dos partidos políticos e as direções das instituições públicas têm afinidades com o programa econômico e social do bolsonarismo. É um dado relevante. Mas não se deve esquecer que a proposta ideológica é o DNA do bolsonarismo. Sua proposta é de “regeneração política e institucional”. A direita tradicional pode ser aceita, apoiar, mas em posição subordinada.
Acho por tudo isso, que devemos nos preparar a um processo longo e complexo. Não sabemos o ritmo e o alcance do impacto na população da política econômica superliberal de Guedes. Nem das tentativas de imposição de uma nova ordem moral. O descontentamento em tese pode ser grande. Mas mudanças de ministro podem apaziguar conflitos algum tempo. A segurança e o combate à corrupção são campos de ação que podem servir de cortina de fumaça ao massacre econômico e social. Há uma grande diferença entre dizer disparates e ausência de políticas claras e incapacidade de tentar manter-se no poder. Não confundamos.
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