Carta de agradecimento aos médicos cubanos pela dedicação ao povo brasileiro e o aprendizado proporcionado
Por Marco Túlio Pereira*
Sou supervisor do Programa Mais Médicos para o Brasil no sertão pernambucano desde os seus primórdios. Em uma de minhas primeiras visitas, na zona rural de um município às margens do São Francisco, acompanhando algumas consultas de um médico cubano, uma cena me chamou a atenção. A cadeira dos pacientes não ficava atrás da mesa, mas ao lado. Com isso, não havia um móvel separando o médico do paciente, tornando-os mais próximos. Um dos aspectos que me pareceu mais potente naquela posição da cadeira era a possibilidade do toque, do contato, ato central num diálogo tão envolvido por angústia e sofrimento, como é uma consulta médica. Outro aspecto que me chamou a atenção foi que a cadeira estava amarrada na mesa.
Perguntei ao médico, que por sinal era professor universitário, e ele me explicou que fez isso porque os pacientes tinham a estranha mania de afastar a cadeira daquela posição e aproximá-la da porta. Era o costume.
Face do povo
Um outro aspecto que sempre me chamava a atenção durante as supervisões é como os médicos cubanos se parecem com o nosso povo. Eles têm a cara das faxineiras das unidades de saúde, das técnicas de enfermagem, dos agentes comunitários de saúde. Têm os rostos dos seus pacientes. No começo, devem ter sido encontros difíceis. As pessoas estavam acostumadas com médicos brancos, bem vestidos, pessoas muito distantes e diferentes dos seus contextos de vida. Se defrontarem com médicos que têm a cara de sua mãe ou de sua irmã deve ter sido um pouco estranho. Mas, passada a desconfiança inicial, poder ser atendido por médicos com a face do povo brasileiro provavelmente foi uma experiência muito marcante para a nossa população.
Uma experiência que muito me marcou na convivência com os médicos cubanos ocorreu no Curso de Formação de uma das primeiras turmas que chegaram em nosso país. No final do treinamento, eles eram submetidos a avaliações em português e temas relacionados ao trabalho médico na Atenção Primária. Avaliei um senhor negro, de aproximadamente 50 anos, bem vestido. Sabe aquelas pessoas que te passam integridade e respeito apenas pela aparência? Pois ele era uma pessoa assim. Sentou-se na minha frente esse senhor com décadas de experiência de trabalho em saúde. Eu tinha pouquíssimos anos de formado e ia naquele momento avaliar se aquele senhor poderia ou não atender no Brasil. Me senti super desconfortável com aquela posição, mas essa era a minha função.
Lembro que ele estava bastante nervoso, inseguro com o Português, ainda se embaralhava um pouco com a língua. Antes de começar a avaliação, me perguntou se tivesse dúvida com o idioma poderia me responder em inglês ou francês. Disse que não, pois também era avaliado pela fluência no idioma. Eu também não sou fluente em Inglês ou Francês, mas isso não vinha ao caso. Apesar da insegurança, foi muito bem e recebeu aprovação. Mais aliviado, pudemos conversar um pouco sobre a vida. Queria ajudá-lo a relaxar. Nestas atividades gostava muito de perguntar aos cubanos sobre as experiências em missões internacionais. Como a maioria deles esteve na Venezuela, eu puxava esse assunto perguntando: “Esteve na Venezuela?” E esse foi um dos únicos médicos que me disse que não. E começou a me contar que sempre preferiu as missões na África. Esteve em diversos países e enfrentou por diversas vezes a barbárie das epidemias de Aids no Continente Mãe. Se orgulhava de falar dois dialetos africanos, além do inglês e francês. E se gabava por ter aprendido a realizar diversos procedimentos cirúrgicos complexos trabalhando com um médico sueco durante um ano na Namíbia. Lembro que me disse que gostava de pescar e lembro de ter ficado muito feliz por saber que iria trabalhar em Vila Velha, onde teria o mar capixaba para praticar o seu hobby.
Queridos colegas cubanos, nós que estamos do lado do povo brasileiro, e que daqui não sairemos, gostaríamos apenas de agradecer por toda dedicação que vocês ofereceram à nossa gente. Mesmo distante de sua terra e de seus familiares, ofereceram ao nosso povo todo o seu conhecimento e capacidade de trabalho. Seremos sempre gratos pelo que fizeram por nós. E confesso que, após esses anos de convivência, no dia-a-dia do meu trabalho, a cadeira dos pacientes sempre fica ao lado da mesa.
* Marco Túlio Pereira é médico de Família e Comunidade e mestrando em Atenção Psicossocial pelo IPUB/UFRJ. Atua como supervisor do Programa Mais Médicos para o Brasil no sertão pernambucano.
Saúde_popular.org
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