Bolsonaro conseguiu a proeza de apresentar-se como uma alternativa a um sistema do qual fazia parte
Para o desgosto e medo de muitos, consumou-se a vitória de um candidato de extrema direta — inédita na história brasileira. As tentativas anteriores — empreendidas por Plínio Salgado e Enéas Carneiro — não haviam chegado a 10% dos votos, apesar das tradições conservadoras. O próprio Jair Bolsonaro era considerado um azarão histriônico. Sua candidatura vagava no reino do inimaginável. Como em relação aos que o precederam, previa-se uma inevitável derrota, dado seu nível de rejeição. Mesmo que chegasse a um improvável segundo turno, seria vencido por um poste, diziam os adversários mais otimistas.
Mas não foi o que aconteceu.
Trata-se, agora, de explicar e interpretar o inesperado.
O sistema político falido foi, sem dúvida, um dos principais fatores. Incapaz de representar as demandas da sociedade, desqualificou-se. A cegueira dos principais partidos em propor sua reforma foi um suicídio. Envolvidos em conchavos eleitoreiros, tomados por um irritante aristocratismo, alérgicos a qualquer autocrítica, partidos e lideranças mostraram-se insensíveis à onda de descontentamento que crescia.
A crise econômica e os milhões de desempregados agravaram o quadro, acirrado pelos péssimos serviços públicos — transportes, saúde e educação — , cuja situação foi denunciada — em vão — pelas grandes multidões em 2013. Contribuiu também a situação ameaçadora da (in)segurança pública, encolhendo as pessoas, temerosas de bandidos, policiais e balas perdidas, num cotidiano infernal que ninguém aguenta mais. Para coroar o divórcio com grande parte da opinião pública, uma gestão mal conduzida de questões morais delicadas — a respeito das quais prevaleceram a omissão e a corrida sem princípios pelos votos dos religiosos conservadores — jogou no colo dos tribunais a decisão sobre assuntos que deveriam ser discutidos abertamente.
Todas estas questões — não resolvidas — levaram à exasperação social e à descrença nas instituições democráticas.
Bolsonaro surfou nesta onda, conseguindo a proeza de apresentar-se como alternativa a um sistema do qual fazia parte. Deu sequência a uma tradição de líderes carismáticos que encarnam a vontade difusa — mas forte — de mudar “tudo o que está aí”. Com um linguajar direto, simplório, denunciando carências e mazelas, propondo soluções apocalípticas, o capitão do Exército convenceu a maioria de que ele era o “salvador da pátria” da vez.
É verdade que a vitória deve ser relativizada. Considerando-se o conjunto do eleitorado, teve um pouco menos de 40% de votos. E muitos de seus sufrágios foram mais resultado do veto ao adversário do que de uma escolha satisfeita. Assim, seria um equívoco caracterizar como “fascistas” ou “nazistas” os que o escolheram. O procedimento, além disso, impediria qualquer diálogo com pessoas que tateiam caminhos e que poderão, num momento seguinte, perceber o erro em que incorreram.
Seria pueril, contudo, não reconhecer a expressividade do sucesso de Bolsonaro. E a ameaça que significa para a frágil democracia que foi possível construir neste país. Não se trata apenas de políticas autoritárias que serão formuladas com incidência geral. Mas da intolerância que tenderá a se disseminar em toda parte. As delações — estimuladas — entre vizinhos, entre estudantes contra os professores, entre funcionários e chefes, entre empregados e empregadores. As intimidações e a prática da violência contra adversários reais ou imaginados, as medidas de arbítrio de chefes, chefetes e chefões e até mesmo de juízes e autoridades, como ocorreu recentemente.
Para lidar com estes perigos, torna-se necessária a formação de uma frente ampla democrática, a cargo da cidadania, em cada lugar de trabalho, de estudo e de moradia, que não pode ficar à espera de nada e de ninguém.
É urgente a construção de linhas de defesa para a democracia, aqui e agora. Subestimar esta urgência é esquecer um antigo e sábio conselho: o maior perigo de uma ditadura não é o próprio ditador, mas o guarda da esquina.
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