A umbanda, religião que comemora o seu mito de origem no dia 15 de novembro, pode ser percebida como um resultado do amálgama entre os ritos de ancestralidade dos bantos, calundus, pajelanças indígenas, catimbós (o culto fundamentado na bebida sagrada do tronco da jurema), encantarias, elementos do cristianismo popular ibérico e do espiritismo kardecista. Seus saberes moram na encruzilhada da cristianização dos ritos africanos e da africanização do cristianismo, com o tempero profundamente indígena, acrescentado aos poucos por diversas contribuições.
Mas vamos ao mito de origem. A versão mais famosa para a criação da umbanda transita em torno do dia em que no distrito de Neves, na cidade de São Gonçalo, Rio de Janeiro, o jovem Zélio Fernandino de Moraes sofreu uma paralisia inexplicável. Zélio teria, depois de certo tempo, se levantado e anunciado a própria cura. A mãe do rapaz o levou a uma rezadeira conhecida na região, que incorporava o espírito do preto velho Tio Antônio.
Tio Antônio disse que Zélio era médium e deveria trabalhar esse dom. No dia 15 de novembro de 1908 (algumas versões sugerem que o fato teria ocorrido em 1907), por sugestão de um amigo do pai, Zélio foi levado à Federação Espírita de Niterói. Subvertendo as normas do culto, Zélio levantou-se da mesa em que estava e disse que ali faltava uma flor. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a, com um copo d’água, no centro da mesa de trabalho.
‘Não haverá caminhos fechados para mim’
Ainda segundo a versão mais famosa, Zélio incorporou um espírito e simultaneamente diversos médiuns presentes receberam caboclos, índios e pretos velhos. Instaurou-se, na visão dos membros da Federação Espírita, uma confusão sem precedentes. Ao ter a atenção chamada por um dirigente da Federação Espírita, o espírito incorporado em Zélio perguntou qual era a razão para evitarem a presença dos pretos e caboclos do Brasil, se nem sequer se dignavam a ouvir suas mensagens.
Um membro da Federação inquiriu o espírito que Zélio recebia, com o argumento de que pretos velhos, índios e caboclos eram atrasados, não podendo ser espíritos de luz. Ainda perguntou o nome da entidade e ouviu a seguinte resposta:
“Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, saibam que amanhã darei início a um culto em que os pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. E se querem saber meu nome que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim”.
É sintomático que a umbanda tenha começado a estruturar o seu culto em um momento singular dos debates sobre a construção da identidade nacional: o pós-abolição e as primeiras décadas da República. Em certo sentido, o que o Caboclo das Sete Encruzilhadas anuncia não é só a religião. A chegada dos pretos velhos, dos caboclos, do povo de rua, da linha dos ciganos, dos boiadeiros, dos baianos, aos terreiros do Brasil, diz muito sobre a história do samba, da capoeira e da popularização do futebol. Diz ainda sobre a inviabilidade de se pensar a identidade nacional com a confortável fixidez que os ideólogos do branqueamento racial e os gestores do projeto colonial, continuado pela República, sugeriam no período.
A história da umbanda e os significados do seu mito fundador contam muito sobre os tensionamentos da formação brasileira. Há um país oficial que ainda tenta silenciar os índios, os caboclos, os pretos, os ciganos, os malandros, as pombagiras (mulheres donas de seus corpos em encanto); e todos aqueles vistos como estranhos por um projeto colonial amansador de corpos, disciplinador de condutas e aniquilador de saberes.
A umbanda está em crise, espremida pelo preconceito e as ações terroristas de ataques aos terreiros por designações neopentecostais. É ainda desqualificada por discursos essencialistas que erguem bandeiras de purezas no meio da encruzilhada em que o Brasil foi assentado. Sofre também do desprezo que o monorracionalismo viciado e eurocêntrico nutre pela multiplicidade de suas potências.
Caboclo se manifestou no dia da proclamação da República
Apesar disso, ou por isso mesmo, afirmo que o Caboclo das Sete Encruzilhadas permanece sendo um poderoso intelectual brasileiro. Nunca achei mera coincidência que seu brado insubmisso tenha sido lançado no aniversário da proclamação da República. Seu protesto gritado na ventania, suas flechas atiradas na direção da mata virgem, clamam por uma aldeia que reconheça a alteridade, as gramáticas não normativas, as sofisticadas dimensões ontológicas dos corpos disponíveis para o transe, a generosidade dos encontros, as tecnologias terapêuticas e populares do apaziguamento das almas pela maceração das folhas e pela fumaça dos cachimbos do Congo.
É ainda o brado mais que centenário do Caboclo das Sete Encruzilhadas que joga na cara do Brasil, como amarração, nosso desafio mais potente: chamem os tupinambás, os aimorés, os pretos, os exus, as pombagiras, as ciganas, os bugres, os boiadeiros, as juremeiras, os mestres, as encantadas, as sereias, os meninos levados, os pajés, as rezadeiras, os canoeiros, as pedrinhas miudinhas de Aruanda. Chamem todas as gentes massacradas pelo projeto colonial (e cada vez mais atual) de aniquilação. A pemba risca os ritos desafiadores de afirmação da vida.
A história exemplar da umbanda é um ponto riscado de louvação aos excluídos pelo Brasil oficial. Ao cultuar (aparentemente) os mortos, é exatamente contra a morte que o brado e a flecha do Caboclo ainda ressoam: quem encantou a sucuri, macerando no toco a folha serenada, despertou de beleza a mata escura.
Luiz Antonio Simas
Historiador, professor, autor de “Almanaque Brasilidades” (Bazar do Tempo) e “Pedrinhas miudinhas” (Mórula), entre outros livros.
Revista Caju
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