quarta-feira, 19 de julho de 2017

Sou preto, mas não sou ladrão, doutor

O abismo que nos separa...

O caminho que conduz à verdadeira democracia é longo e sinuoso

Milton Hatoum, O Estado de S.Paulo

“Trabalhar nós trabalhamos/Porém pra comprar as pérolas/Do pescocinho da moça/Do deputado Fulano”. (Mário de Andrade, ‘Acalanto do Seringueiro’, em ‘Clã do Jabuti’, 1927)

Numa tarde de 2001, quando ainda morava perto do centro da cidade, um homem de uns 50 anos veio ao meu encontro: “Sou preto, mas não sou ladrão, doutor. Só quero o dinheiro do ônibus”.

Ele havia procurado emprego num supermercado, e queria voltar à sua casa.

Nunca mais esqueci as frases desse brasileiro desempregado, frases que resumem o abismo que separa os pobres (afrodescendentes em sua maioria, mas também mestiços e brancos) da classe média e dos ricos. Claro: há razões históricas que explicam ou esclarecem isso. Quase quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma democracia manca, interrompida por várias ditaduras só poderiam gerar uma sociedade extremamente desigual.



A “democracia” brasileira, ou sua máscara caricata e grotesca, reproduz os privilégios do clientelismo, patrimonialismo, do mandonismo. Quando uma pessoa mais humilde nos chama de “doutor”, parece que todo o passado da escravidão reverbera nessa palavra, que só faz sentido se dirigida aos médicos.



Nosso ar de superioridade e petulância em relação aos pobres, nossa indiferença e desprezo pelos índios e pelos afrodescendentes inviabiliza qualquer projeto verdadeiramente democrático. Uma sociedade e um governo que toleram ou aceitam passivamente o assassinato de 50 mil jovens por ano não podem ser democráticos.



Depois de ter visitado presídios de várias capitais, a presidente do STF ficou estarrecida com as condições desumanas dos detentos. Apesar da sincera indignação da ministra, é provável que pouca coisa mude. Sabemos que uma mãe pobre foi condenada a quase dois anos de prisão por ter furtado ovos de Páscoa. Mulheres pobres que cometem um pequeno delito sofrem penas pesadas, enquanto esposas e irmãs de chefões do crime são brindadas com prisão domiciliar. A coroação da injustiça (ou da justiça assimétrica de uma parte do Judiciário) foi a sentença de prisão domiciliar do homem da mala.



Faz parte da desfaçatez nacional manter o conluio entre os três poderes. Sem isso, o País seria outro. E só um otimista ou ingênuo acredita que o próximo Congresso será plenamente renovado, e que uma maioria decente de deputados e senadores será eleita. Infelizmente, os chantagistas e corruptos serão maioria nas próximas eleições, apenas mudarão os nomes dos “doutores” e excelências. Como diz o sobrinho do príncipe Dom Fabrizio no romance de Lampedusa ('O Leopardo'): “Tudo continuará na mesma quando tudo tiver mudado”.



Uma reforma política profunda e investimentos maciços na educação pública são tão urgentes quanto necessários, mas não serão feitos. Os que usam (e usarão) tornozeleiras eletrônicas em sua confortável reclusão domiciliar abominam essas duas grandes questões. E a maioria dos deputados, senadores, prefeitos e governadores tampouco se interessa por essas duas grandes questões. Preferem mudanças superficiais, pois assim garantem que tudo continue na mesma.



O caminho que conduz à verdadeira democracia é longo e sinuoso. Os péssimos exemplos que vêm do alto da pirâmide política e econômica são nocivos a toda a sociedade. Mas afirmar que somos um povo corrupto é uma generalização absurda, uma autoflagelação moral tresloucada, inaceitável. É na base social – formada pelos desvalidos e a classe média – que as mudanças deverão ocorrer. O voto consciente, a pressão popular, os protestos e a indignação são os únicos vetores de uma verdadeira mudança política. Enquanto isso não ocorrer, a barbárie, movida pela impunidade e pela desigualdade, seguirá seu curso.



As frases do desempregado de algum modo dialogam com os versos da epígrafe de Mário de Andrade. No mesmo poema ('Acalanto do Seringueiro'), ele escreve:



“Você, seringueiro do Acre, brasileiro que nem eu”.



O seringueiro do rio Purus, ou de outras regiões da Amazônia, é o migrante nordestino, mestiço de várias origens: africana, indígena, europeia. Mas pode ser o índio escravizado, forçado a trabalhar nos seringais desde o século 19. Enquanto esses Outros não forem considerados brasileiros como nós por nós mesmos e pelos três poderes, o País continuará fraturado, incapaz de compreender a si mesmo. Este é o abismo que nos separa uns dos outros...



Estadão



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