“O ideário da esquerda deveria compreender que
há no mundo produtivo um processo aberto e em disputa, que exige de nós
abertura a múltiplas fontes teóricas. Isto não significa capitular ao espírito
do tempo, mas sim manter-se à altura da complexidade social que caracteriza o
mundo atual. É preciso ver, por exemplo, na crise do assalariamento e o
consequente “escape” pelo empreendedorismo, não uma capitulação, mas uma nova
oportunidade de emancipação”
, escrevem David Carneiro, doutorando em Filosofia do Direito pela UERJ e consultor legislativo e Roberto Dutra, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt, é professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em artigo publicado por CartaCapital, 12-12-2016.
, escrevem David Carneiro, doutorando em Filosofia do Direito pela UERJ e consultor legislativo e Roberto Dutra, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt, é professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em artigo publicado por CartaCapital, 12-12-2016.
Segundo
eles, “ao invés de ignorar ou esnobar a força que surge nas periferias
brasileiras, a esquerda deveria valorizar a linguagem política que prioriza o
sonho da autonomia individual, coletivamente construído e sustentado nas
famílias e igrejas periféricas. Trata-se de terreno muito mais fértil do que aquele
orientado por ideias coletivistas vagamente professadas, restritas a
corporações e movimentos tradicionais”.
Eis o
artigo.
Em seu
clássico A economia do socialismo possível, Alec Nove relembra-nos um conto de
Vasili Grossman no qual o escritor ucraniano coloca as seguintes palavras na
boca de um soldado soviético: “desde pequeno, sonho em abrir uma lojinha. Assim
as pessoas poderiam entrar e comprar. Ao lado dela, haveria uma lanchonete,
onde os clientes pudessem comer carne assada e tomar um bom drink se assim
quisessem. Tudo isso por um bom preço...se eu falasse isso em voz alta, no
entanto, seria mandado direto para a Sibéria. E mesmo assim, eu lhe pergunto:
que mal estaria fazendo a essas pessoas?”
Hoje os
males de uma economia planificada e as irracionalidades e efeitos políticos
colaterais que lhes são correlatos são de amplo conhecimento e já não angariam
simpatias, ao menos expressas, na maior parte da esquerda e dos setores
progressistas.
Não
obstante, o ódio ou a desconfiança em relação ao empreendedorismo persistem e
são reatualizados pelo imaginário coletivista e pela herança teológica que a
esquerda decidiu chamar de sua.
Ao mesmo
tempo em que se orgulha de ter implementado políticas, em parte, de fato
responsáveis pela emergência de uma “nova classe média”, que nós chamamos aqui
de “batalhadores”, a esquerda manteve, no nível de sua estética e
representações, uma imensa má vontade em relação aos valores dessa classe
emergente, fechando as portas para uma aproximação programática e para a
própria inteligibilidade de seu discurso.
O primeiro
elemento desse fechamento e talvez o mais tosco consiste no conclamado ódio
nutrido pela entidade abstrata que se convencionou chamar de “classe média”.
Não há uma única pesquisa que mostre que a classe média brasileira possua
posições políticas mais retrógradas que “os pobres” e nem que haja, nos
estratos de renda média, uma única posição política consolidada. Apesar, é
claro, de um avanço conservador, nos últimos anos, poder ser verificado em
todas as classes e estratos sociais.
Apontar
esse fato não significa negar a existência de posições retrógradas em um nível
alarmante, nem negar a vocação colonial das elites brasileiras, mas sublinhar
os riscos que a reificação de uma imagem de classe traz ao cultivo de um
imaginário progressista.
Pode-se
dizer que um dos erros contido nesse “ódio” é que a condição de classe média,
compreendida como um mínimo de conforto material e segurança familiar, é
aspiração quase que universal e legítima nos dias atuais, à qual muitos almejam
alcançar e da qual muitos lutam para não sair.
Ao cultivar
esse ódio irracional, a esquerda parece esnobar boa parte das lutas cotidianas
das pessoas comuns do País, seja para fechar as contas no final do mês, seja
para garantir o sustento dos filhos. Quando não, para fugir ou remediar a
dolorosa realidade atual do desemprego.
O reverso
do ódio à classe média tem se materializado em outro erro, que chamamos de
cultivo da estética do “pobrismo”. Uma vez indisponível a figura do operário
modelo, o pobre, o flagelado ou, de modo mais idílico, os povos tradicionais,
transformaram-se em horizonte estético da esquerda, operando um fechamento para
os horizontes de vida possíveis e um afastamento de aspirações legítimas das
maiorias desorganizadas do País.
Se por um
lado sonhar com um eletrodoméstico soa quase como uma traição de classe, um
atestado de ser “manipulado” ou mesmo exemplo do “erro” da estratégia de
inclusão pelo consumo, o pobre só “prestaria” para esquerda quando assumisse
com orgulho sua condição de destituído, isto é, sem os vícios típicos dos
“pequenos burgueses” e seus sonhos de ascensão material.
Isso, é
lógico, quando muitos dos intelectuais de esquerda já têm acesso aos mesmos
bens desejados pelos batalhadores.
Quando se
cruzam no mundo produtivo, o ódio à classe média e o pobrismo transformam-se em
negacionismo das experiências de empreendedorismo dos batalhadores.
O sonho com
o negócio, a busca de autoajuda e mesmo redes cooperativas ligadas à religião
são reduzidos a “dispositivos funcionais de controle” ou captura pela
“ideologia capitalista”.
Batalhadores
são lembrados a todo o tempo que “não são um deles” ou que são simplesmente
“massas de manobra” de empresários e pastores.
É preciso
entender que se, como mostram algumas pesquisas, mais de 40% dos moradores de
favelas sonham em ter seu próprio negócio, não o fazem somente por vocação (ou
manipulação), mas também por necessidade. Nos dias que correm, o “empreender” é
tanto a possibilidade que resta aberta para uma vida melhor quanto uma
necessidade imediata de prover a si mesmo e a sua própria família diante da
crise do assalariamento.
Disso não
se segue, é claro, que os setores progressistas devam comprar totalmente o
“discurso do empreendedorismo” ou a própria linguagem dos batalhadores tal como
se apresenta. Uma das faces mais perversas da “ideologia do empreendedorismo”
consiste na tentativa de culpar os pobres pela própria pobreza e ilidir os
fatores estruturais das desigualdades e privações nas sociedades atuais. Não se
pode, contudo, confundir o empreendedorismo com sua ideologia.
Em vez
disso, o ideário da esquerda deveria compreender que há no mundo produtivo um
processo aberto e em disputa, que exige de nós abertura a múltiplas fontes
teóricas. Isto não significa capitular ao espírito do tempo, mas sim manter-se
à altura da complexidade social que caracteriza o mundo atual. É preciso ver,
por exemplo, na crise do assalariamento e o consequente “escape” pelo
empreendedorismo, não uma capitulação, mas uma nova oportunidade de
emancipação.
Isso nos
leva, por consequência, à necessidade de cultivar alternativas não-estatistas,
que poderíamos chamar de um “liberalismo popular” ou “experimentalismo
democrático”. Abraçar essas alternativas não significa abandonar a aspiração
emancipatória do socialismo dos séculos XIX e XX, mas revisitar seus próprios
fundamentos.
Não
esqueçamos que autores como Marx sempre tiveram o valor da autonomia individual
como parte central de seus ideários políticos. O comunismo previa a conquista,
por meio da luta social, daquilo que a sociedade de então não podia oferecer: a
liberação do potencial de produtor autônomo de cada indivíduo.
O erro de
Marx, é claro, foi não ter antevisto as consequências anti-democráticas da
planificação, mas qualquer projeto que deseje revisitar os fundamentos de Marx
sem incorrer em seus erros deve assumir que o caminho para uma sociedade de
produtores autônomos precisa estar baseado em algum tipo de organização
econômica que valorize a iniciativa e a autonomia individuais.
Um projeto
desse tipo passa na maioria das vezes por fora do Estado, mas exige também
outro modelo de Estado para que possa florescer.
Um novo
projeto de esquerda deve combinar a energia autônoma dos pequenos negócios,
cooperativas e empreendimentos com um novo desenho das instituições, que vá
além da distribuição marginal da renda e do discurso da equidade que até agora
marcaram, para o bem ou para o mal, a experiência da esquerda no poder.
Se por um
lado um programa desse tipo baseia-se na democratização do acesso dos pequenos
e médios empreendimentos ao crédito e a oportunidades de capacitação e escala
que lhes são negados pelo neoliberalismo, por outro radicaliza o projeto da
esquerda, recolocando a questão estrutural da reorganização da economia e das
oportunidades no centro do debate político.
Ao invés de
ignorar ou esnobar essa força que surge nas periferias brasileiras, a esquerda
deveria valorizar a linguagem política que prioriza o sonho da autonomia
individual, coletivamente construído e sustentado nas famílias e igrejas
periféricas. Trata-se de terreno muito mais fértil do que aquele orientado por
ideias coletivistas vagamente professadas, restritas a corporações e movimentos
tradicionais.
Isso porque
permite tanto que os setores progressistas mobilizem uma nova base para
bandeiras históricas, como a democratização do crédito produtivo e a
reorganização do sistema financeiro, mas também a abertura a novas formas de
construção de prosperidade individual e coletiva.
A aliança entre
e a esquerda e os batalhadores está longe de ser automática. O discurso destes
hoje, não sem motivos, mistura uma profunda desconfiança na política com a
crença de que o Estado deve prover infinitas demandas. Se a esquerda conseguirá
se encontrar programaticamente com a energia dos batalhadores, é uma questão
aberta.
Algo, no
entanto, não parece estar em aberto. Ao manter o discurso do ódio à classe
média, da estética do pobrismo e da nostalgia mal confessada da planificação,
caminhamos para uma fragorosa derrota histórica. Contra a redução estética,
defendemos que a esquerda precisa fazer sua opção preferencial pela riqueza.
Não para cultivar a cultura do descarte, mas para promover o reencontro com as
aspirações e possibilidades de prosperidade colocadas pelo nosso tempo.
Unisinos
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