Nem governos, parlamentares, juízes, procuradores e promotores têm o monopólio “da boa vontade, pois, se assim fosse, seria o caso de conceder-lhe poder ilimitado, o qual, como ensinou Montesquieu, abriria caminho para a tirania.´
André Singer
Em meio à enxurrada de más notícias do ano que começa a terminar, o embate desta semana em torno do abuso de autoridade pode gerar, ao fim, algum resultado positivo. Desde que o Senado optou por reabrir a discussão, sem seguir a incrível manobra de Renan Calheiros de votação a toque de caixa do que a Câmara havia aprovado na calada da noite, há chance de o equilíbrio entre os Poderes funcionar. Com alguma sorte, surgirá luz em meio a tanto calor.
Causou justificado choque a maioria parlamentar da madrugada da quarta (30/11) que estabeleceu novos limites para juízes e promotores. Suponhamos, no entanto, apenas para efeito de raciocínio, que tenha sido, de fato, reação meramente corporativa. Isto é, que os deputados quisessem apenas se defender de acusações e eventuais punições por estarem envolvidos em falcatruas.
Ainda assim, os argumentos levantados por eles devem ser levados em consideração. Parece haver consenso, entre os especialistas, de que a atual lei de abuso de autoridade, promulgada em 1965, precisa de atualização.
Em agosto passado, o advogado Luís Francisco Carvalho Filho escreveu em sua coluna quinzenal na Folha: "O movimento do juiz Sergio Moro, com apoio de magistrados e investigadores, contra projeto de lei que define crimes de abuso de autoridade tem viés reacionário e corporativo".
Em outras palavras, mesmo que caiba desconfiar da Câmara, cujas decisões nos últimos meses têm sido mais do que questionáveis, neste caso poderá ter ajudado no necessário controle de um conjunto de agentes públicos cujo raio de ação cresceu a olhos vistos na Operação Lava Jato. Episódios recentes, como a prisão e imediata soltura do ex-ministro Guido Mantega, mostraram o arbítrio funcionando ao vivo e em cores.
Por outro lado, merecem atenção as alegações do Judiciário e do Ministério Público de que é necessário preservar, na legislação específica, a independência dos Poderes, prevista na Constituição. Não interessam as intenções de cada um dos indivíduos envolvidos no debate. Nenhuma das partes é monopolista da boa vontade, pois, se assim fosse, seria o caso de conceder-lhe poder ilimitado, o qual, como ensinou Montesquieu, abriria caminho para a tirania.
Fazer com que um Poder limite o outro é o segredo para permitir alguma liberdade ao cidadão, cujo poder individual é ínfimo diante das organizações modernas. No Brasil de hoje, talvez a negociação à luz do dia gere uma solução equilibrada sobre o tema do abuso de autoridade, interesse maior da sociedade e da República. Cabe à opinião pública aproveitar a oportunidade para obter um dos poucos benefícios à vista em toda esta crise.
Folha SP
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