Aguinaldo, paraibano da Queiroz Galvão cumpre seu dever |
"A PEC 241, apelidada carinhosamente de
#PecDoFimDoMundo, surge como o maior símbolo de uma inflexão na nova fase do
capitalismo dependente brasileiro."
“A democracia pagou um alto preço pela respeitabilidade:
teve de abandonar suas bandeiras igualitárias e libertárias
e se tornar uma forma inócua de organização política,
cujo funcionamento, longe de transformar a distribuição
existente de riqueza e poder em função de um
projeto emancipatório, não apenas reproduz como fortalece
a desigualdade ao dotá-la de uma nova legitimidade.
Certamente os nomes de ‘democracias de baixa intensidade’ ou,
como dissemos antes,‘plutocracias’ ou ‘oligarquias’
servem bem a essa espécie de insípidos regimes (…)”
No processo de colonização das Américas, mediante a
expropriação massiva dos meios de produção e reprodução das civilizações
indígenas, Pindorama se tornou Brasil para atender aos interesses das classes
dominantes externas. O Estado nacional, na forma da metrópole portuguesa, foi
determinante na pilhagem dos recursos naturais e na exploração de índios e
negros tornados escravos. O objetivo era alimentar os circuitos da acumulação
primitiva do capital que então se desenvolvia em alguns países da Europa
Ocidental. Estado e capital andaram juntos na alvorada mundial do modo de
produção capitalista, e nunca mais se separaram.
Após a Independência de 1822, o Estado brasileiro atuou
vivamente na manutenção de condições gerais para o enriquecimento das classes
proprietárias nacionais e internacionais, seja com intervenções na economia
seja no uso da coerção contra as distintas revoltas indígenas, quilombolas e
populares ao longo do Império. E assim foi em outros períodos históricos: na
República Velha com o tratamento da questão social como “questão de polícia” e
as intervenções cambiais, monetárias e fiscais para garantir o lucro dos
latifundiários; na Era Vargas com a perseguição brutal a Aliança Nacional
Libertadora (ANL) e aos comunistas e o apoio à industrialização centrado na
burguesia paulista; na ditadura empresarial-militar de 1964-85 com prisões,
torturas, exílio e morte dos seus opositores e a mudança do padrão de
acumulação concorrencial para o monopolista, com hegemonia do capital
financeiro internacional.
O que mudou, de acordo com a correlação de forças nas lutas
de classes nas várias fases do capitalismo dependente, foi a forma pela qual o
Estado atuou tanto na garantia das condições gerais da acumulação capitalista
quanto no combate às revoltas, motins, greves e revoluções populares. Esta
atuação sempre combina coerção e consenso para a manutenção da supremacia
burguesa, composta pelas suas distintas frações (comercial, industrial,
agrária, financeira, etc.) e suas expressões nacionais e internacionais.
Na transição da ditadura empresarial-militar para a Nova
República, foi preciso contemplar, pela via do consenso, algumas demandas históricas
da classe trabalhadora, que havia arrancando, com o seu processo de
reorganização político-cultural a partir do final dos anos 1970, direitos
civis, políticos e sociais. Tais direitos foram consagrados na Constituição
Federal de 1988 que, contemplava, ao mesmo tempo, vitórias das classes
dominantes a partir da atuação do Centrão e conquistas dos trabalhadores. Neste
choque entre as classes, a Constituição foi chamada de cidadã para celebrar as
significativas e parciais vitórias das classes subalternas, mas nela também
estavam contidos antigos privilégios das classes dominantes, acrescidos de
novos. E mesmo alguns direitos sociais inscritos na lei máxima do país nunca
saíram do papel ou, quando foram efetivados em políticas sociais – com destaque
para a seguridade social (saúde, previdência e assistência social) –, ficaram
limitados pela coerção gerenciada pela política econômica neoliberal dos anos
1990 em diante.
Na era neoliberal, instaurada a partir do governo Collor e
aprofundada nos governos FHC, Lula e Dilma – com diferenças que merecem as
devidas mediações teóricas e políticas –, o Estado nacional continuou a serviço
dos interesses das classes dominantes, hegemonizados pelos interesses das
frações rentistas da burguesia. O Estado não se tornou mínimo, a não ser na
retórica de ufanistas neoliberais. Na prática, a acumulação capitalista contou
decisivamente com a atuação direta e indireta do Estado: a privatização dos
ativos públicos com financiamento estatal, a política monetária de juros altos,
a liberalização das contas internacionais, a expropriação tributária dos
salários que alimenta mais da metade do fundo público, a política fiscal
direcionadora do fundo público para os fundos privados bilionários dos
detentores dos títulos da dívida pública, a retirada de direitos sociais e etc.
O golpe de 2016 no Brasil é, talvez, o capítulo mais
dramático do neoliberalismo. Inscrito numa conjuntura internacional de crise
orgânica do capitalismo, que alia crise econômica e crise de hegemonia – com
aumento brutal da coerção estatal e de grupos paraestatais exercida contra a
classe trabalhadora, ganhando ares neofascistas –, o golpe
legislativo-midiático-judiciário leva o vice-presidente Temer ao posto máximo
do Executivo. A sua função histórica é retomar, a qualquer custo, as taxas de
lucro declinantes no país e de apassivar os crescentes rompantes de rebeldia
popular (greves operárias e de servidores públicos, ocupações estudantis,
urbanas e rurais, levantes indígenas, as lutas dos movimentos feminista, negro
e LGBT). Para isto, Temer reabilita figuras típicas do rentismo burguês, que
recentemente ocuparam postos-chave por anos a fio nos aparelhos coercitivos
estatal de expropriação e exploração (Banco Central, Receita Federal, BNDES,
Ministérios da Fazenda e do Planejamento, empresas e bancos estatais), e monta
uma camarilha financeira para determinar as diretrizes centrais da política
econômica.
A hegemonia das frações rentistas no bloco de poder dominante
não é uma novidade histórica do governo golpista de Temer. Esta foi a tônica na
era neoliberal em todos os governos desde FHC, como atestam os balanços
patrimoniais dos grandes conglomerados capitalistas internacionais e nacionais
e as principais medidas da política econômica nos últimos vinte anos. Estamos,
portanto, não diante de uma restauração neoliberal com o golpe, mas sim de uma
nova etapa do neoliberalismo, a mais radical no sentido de atacar direitos
sociais que nem mesmo os governos anteriores (PSDB e PT) conseguiram levar a
cabo ou mesmo colocaram em pauta.
Colocou-se em movimento uma ofensiva conservadora de nova
rodada de privatizações e concessões públicas e a retirada de direitos sociais
conquistados ao longo de todo o século XX, tendo como alvo prioritário a
Constituição Federal. Um conjunto de medidas – aumento da jornada de trabalho,
retirada de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, contrarreformas
dos ensinos médio e superior – é apresentado pelo Executivo e Legislativo sem
apoio popular, mas com respaldo dos oligopólios de comunicação, das altas
esferas do Judiciário e dos setores mais reacionários da classe média.
Medidas similares foram implementadas anteriormente, mas não
na velocidade e intensidade das apresentadas no governo golpista. Temos, assim,
mudanças quantitativas e qualitativas no projeto neoliberal. A PEC 241,
apelidada carinhosamente de #PecDoFimDoMundo, surge como o maior símbolo desta
inflexão na nova fase do capitalismo dependente brasileiro. Por quê?
A PEC 241 não é um raio em céu azul de brigadeiro. Antes
dela, o país passou por um contínuo ajuste fiscal desde os acordos assinados
por Fernando Henrique Cardoso com o Fundo Monetário Internacional em 1998,
garantido o superávit primário como um dos pilares do tripé da política
econômica neoliberal (os outros dois são a meta inflacionária e o câmbio
flutuante). De 1994 para cá, um conjunto de leis foi escrito pelas classes
dominantes no parlamento nacional para construir a base jurídica do Plano Real,
uma das âncoras do projeto neoliberal. Basta lembrarmos da Desvinculação de
Receitas da União (criada como Fundo Social de Emergência, depois Fundo de
Estabilização Fiscal), que recentemente aumentou de 20 para 30%, e a Lei de
Responsabilidade Fiscal (2000), fortalecendo a orientação do gasto público para
o pagamento maciço da dívida interna.
Em poucas palavras, com esta nova legislação o governo define
como prioridade o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. Este
novo padrão de gastos públicos, que enfraquece os mecanismos constitucionais de
alocação de recursos para as políticas sociais, foi garantido pela correlação
de forças favorável às classes dominantes. Ou seja, havia margens na disputa
pelo fundo público, pois havia a possibilidade de crescimento dos gastos com
políticas sociais e anticíclicas, mesmo que limitada pela nova legislação
neoliberal e a sujeição dos sucessivos governos ao projeto das classes
dominantes.
Hoje, caso a PEC 241 seja aprovada, a margem de disputa do
fundo público em favor do trabalho será nula! Os gastos com as políticas
sociais ficarão congelados em termos reais pelos próximos vinte anos, só
podendo ser reajustados nominalmente de acordo com o índice inflacionário do
ano anterior, desconsiderando as taxas de crescimento econômico e as
demográficas. A expropriação do fundo público em favor dos grandes
conglomerados do capital financeiro financeirizado chegará a um patamar
superior.
Para termos uma noção estimada dos impactos da PEC 241 nas
políticas sociais caso ela estivesse em vigor no período de 2002 a 2015, vale
recorrermos a uma nota técnica elaborada pelo Dieese.* De acordo com o texto do
Departamento, “no caso da educação, com a nova regra, a redução seria de 47%,
no período. Já em relação às despesas com saúde, a redução seria de 27%. Em
relação ao montante de recursos, a perda na saúde, entre 2002 e 2015, teria
sido de R$ 295,9 bilhões e, na educação, de R$ 377,7 bilhões.”. No total,
estamos falando de R$ 673,6 bilhões expropriados das políticas sociais e apropriados
pelos donos da dívida pública interna.
Com a PEC 241, a mudança de padrão do gasto público será
garantida constitucionalmente, numa espécie de transformismo do
constitucionalismo do socialismo del siglo XXI. Recentemente, Venezuela,
Bolívia e Equador, a partir de lutas contra a dependência externa e interna,
conseguiram incorporar direitos sociais às políticas de Estado por meio de
reformas constitucionais e uma série de referendos populares. No Brasil,
estamos na via contrária, na qual as classes dominantes alteram a Constituição
para destruir direitos sociais e consagrar a plutocracia burguesa, tornando os
espaços democráticos meros simulacros da política.
O fundo público e os aparelhos estatais de política econômica
– aqui intitulados de aparelhos coercitivos de expropriação e exploração – são,
assim, blindados de acordo com a hegemonia rentista dentro do bloco de poder
dominante. Os limitados espaços de decisão democrática no Legislativo, por
exemplo, são tornados irrelevantes sem serem destruídos. Mantém-se a aparência
de legalidade e democracia das decisões governamentais quando, no fundo, o
poder está altamente concentrado nas mãos dos bilionários e fora do alcance
institucional das classes subalternas. O golpe segue, aparentemente, os ritos
da Casa do Povo sob a condução do Supremo Tribunal Federal e o poder central é
reafirmado no Executivo.
Dentre os Três Poderes, o Executivo se torna um bunker
tecnocrático respaldado na Constituição, via PEC 241, por exemplo, para operar
métodos intensificados de exploração da classe trabalhadora e expropriação de
seus direitos sociais e seus meios de produção ainda disponíveis na forma
pública (terras, água, florestas, subsolo, etc.). O Estado amplia os seus
aparatos coercitivos policiais, legislativos e econômicos e maximiza a sua
força na captura da riqueza nacional para benefício de muito poucos, e a lei
tendencial de concentração e centralização de capital nas mãos dos grandes
conglomerados econômicos se reafirma na atualidade do capitalismo dependente
brasileiro.
Com o avanço da ofensiva conservadora das classes dominantes,
os subalternos devem ousar construir o poder popular, com ocupações,
mobilizações, paralisações e greves gerais. Somente desta maneira poderemos
sair da defensiva e pautar um projeto autônomo de classe, que lute não somente
contra os ataques mais agudos do neoliberalismo, mas também do imperialismo e
do capitalismo dependente na sua atual fase.
* DIEESE. PEC 241 nº 241/2016: o novo regime fiscal e seus
possíveis impactos. Nota técnica n.161, setembro de 2016. Disponível aqui.
Acesso em 23 de out. 2016.
***
Rodrigo Castelo é Professor da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), membro do Grupo de
Trabalho (GT) Teoria Marxista da Dependência da Sociedade Brasileira de
Economia Política (SEP) e presidente (2015-2017) da Adunirio, seção sindical do
Andes-SN na Unirio. É um dos autores do dossiê “Que desenvolvimentismo?” do
número #23 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Colabora com o Blog da
Boitempo especialmente para o dossiê “Não à PEC 241”.
Boitempo
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