Telefonei para a maternidade indagando se havia nascido o bebê número 100.000.000, e não souberam informar-me:
- De zero hora até este momento nasceram oito, mas nenhum foi etiquetado com esse número.
É uma falha do nosso registro civil: as crianças não recebem número ao nascer. Dão-lhes apenas um nome, às vezes surrealista, que as acompanhará por toda a vida como pesadelo, quando a numeração pura e simples viria garantir identidade insofismável, poupando ainda o vexame de carregar certos antropônimos. Centenas de milhares nascem João ou José, mas o homem ou a mulher 25.786.439 seria uma única pessoa viva, muito mais fácil de cadastrar no fichário do Imposto de Renda e nos 10 mil outros fichários com que é policiada a nossa existência.
Passei por baixo do viaduto, onde costumam nascer filhos do vento, e reinava uma paz de latas enferrujadas e grama sem problemas. Ninguém nascera ali depois da meia-noite. O dia 21 de agosto, marcado para o advento do brasileiro cem – milhões, transcorria sem que sinal algum, na terra ou no ar, registrasse o acontecimento.
Costumo acreditar nos bancos, principalmente nos oficiais, e se o Banco Nacional da Habitação, através do Serfhau, garantiu que nessa segunda-feira o Brasil atingiria a cifra redonda de 100 milhões de habitantes, é porque uma parturiente adrede orientada estaria de plantão para perfazer esse número.
Verdade seja que o IBGE, pelo Centro Brasileiro de Estudos Demográficos, julgou prematura a declaração, e só para o trimestre de outubro/dezembro nos promete o brasileiro em questão. Não ponho em dúvida sua autoridade técnica, mas um banco é um banco, ainda mais se agência governamental, e a esta hora deve ter recolhido nosso centésimo milionésimo compatrício em berço especial da casa própria, botando-lhe à cabeceira um cofre de caderneta de poupança.
É que me custa admitir o nascimento desse garoto, ou garota, sem o amparo de nossas leis sociais, condenado a ser menos que número – uma dessas crianças mendicantes, que não conhecerão as almofadas da felicidade. Não queria que a televisão lhe desse um carnê e uma viagem à Grécia, nem era preciso que Manchete lhe dedicasse 10 páginas coloridas, sob o patrocínio do melhor leite em pó. Mas gostaria que viesse ao mundo com um mínimo de garantia contra as compulsões da miséria e da injustiça, e de algum modo representasse situação idêntica de milhões de outras crianças que recebem – estou pedindo muito? – não somente o dom da vida, mas oportunidades de vivê-la.
Seria vaidade irrisória proclamar-se ele o 100.000.000º brasileiro, membro eufórico da geração dos 100 milhões, e saber-se apenas mais um marginalizado, que só por artifício de média ganha sua fatia no bolo do Produto Nacional Bruto.
Não desejo herói de nem mártir anônimo. Prefiro vê-lo como um ser capaz de fazer alguma coisa de normal numa sociedade razoavelmente suportável, em que a vida não seja obrigação estúpida, sem pausa para fruir a graça das coisas naturais e o que lhes acrescentou a imaginação humana.
Olho para esse brasileiro cem – milhões, nascido ontem ou por nascer daqui a algumas semanas, como se ele fosse meu neto… bisneto, talvez. Pois quando me dei conta de mim, isso aí era um país de 20 milhões de pessoas, diluídas num território quase só mistério, que aos poucos se foi desbravando, mantendo ainda bolsões de sombra. Vi crescer a terra e lutarem os homens, entre desajustes e sofrimentos. Os maiorais que dirigiam o processo lá se foram todos. Vieram outros e outros, e encontro nessa geração o novo rosto da vida, que se interroga. Há muita ingenuidade, também muita coragem, e os problemas se multiplicam com o crescimento desordenado. Somos mais ricos… e também mais pobres.
Meu querido e desconhecido irmão nº 100.000.000, onde quer que estejas nascendo, fica de olho no futuro, presta atenção nas coisas para que não façam de ti subproduto de consumo, e boa viagem pelo século XXI adentro.
Carlos Drummond de Andrade in De notícias e não notícias faz-se a crônica
Felicidadeincondicional
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