quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O que resta para a esquerda?


Alberto Aggio

No início da década de 1990, Norberto Bobbio chamou a atenção para o fato de que, se era constatável a morte do comunismo, seria necessário admitir que as razões da sua existência permaneciam vivas, na medida em que se faziam presentes, ao redor do mundo, as marcas da desigualdade. 

Guardadas as situações e identidades diferenciadas, o argumento de Bobbio talvez possa ser útil na reflexão sobre a situação que se impôs depois do desastre eleitoral do PT. Os resultados eleitorais indicam, se não o fim do PT, ao menos o fim da era eleitoral de predomínio do petismo. Contudo as razões que marcaram a simbologia desse partido ainda se fazem presentes, além de outras que vão seguramente além do PT. Não à toa, voltou-se a falar em “refundação do PT”, em “nova esquerda” e mesmo numa “outra esquerda”.



Nascido na transição para a democracia, o PT contestou as instituições estatais da modernização autoritária, notadamente as que bloqueavam a livre ação sindical. Buscou um protagonismo exclusivo para demarcar sua identidade e virou as costas para os atores democráticos que lutaram contra a ditadura. Além disso, alicerçou-se na transformação societária que estimulou o consumismo de cima a baixo da sociedade, tornando homólogos interesses e direitos.



Seu grupo dirigente deriva de uma simbiose entre os derrotados da luta armada, católicos de base e sindicalistas que viam a lógica dos interesses econômicos como superior a qualquer outra. Cristalizou uma cultura política de rechaço, mesclando-a com a representação de interesses corporativos e setoriais. Ambas as operações serviram à lógica de conquista do poder. Foi assim que o PT se moveu nas disputas eleitorais sucessivas até conquistar a Presidência da República, em 2002.



Depois da conciliação inicial, o governo petista voltou a buscar sua identidade exclusivista por meio de um deslocamento regressivo notável: de um partido contestador do Estado e da sociedade, que se havia formado a partir da modernização autoritária, o PT retomou o programa nacional-desenvolvimentista, reafirmando a centralidade do Estado, para dar passagem a uma aliança instrumental com o grande empresariado, visando à sua inserção competitiva na economia globalizada. Essa estratégia reforçou o projeto de poder, que não poderia sofrer contestação, sob o argumento de que se tratava da defesa dos mais pobres e do interesse nacional.



Essa operação regressiva impactou a linguagem e as condutas da competição política, produzindo um efeito nefasto: a introdução da contraposição “nós versus eles”, que causou um efeito devastador para a convivência democrática. Em simultaneidade, os movimentos sociais foram perdendo a autonomia propositiva e de ação que tinham e, estatizados, passaram a servir ao projeto de poder do petismo. Com acerto, Luiz Werneck Vianna caracterizou essa regressão como “o Estado Novo do PT”.



A crise de 2008 e o aprofundamento da estratégia nacional-desenvolvimentista, redefinida como “nova matriz econômica”, jogou o País na maior crise econômica da sua História e a sociedade voltou a se defrontar com o flagelo da inflação, da recessão e do desemprego. Este cenário dramático e os processos de corrupção movidos pela Operação Lava Jato evidenciaram o vínculo entre o controle corrupto de estatais, como na Petrobrás, e o projeto de poder do petismo. O bumerangue não tardaria seu retorno, explodindo nas manifestações multitudinárias pelo impeachment até sua conclusão. O resultado eleitoral nada mais fez do que jogar uma pá de cal no projeto de poder do PT, sem remissão.



O que resta agora para a esquerda? Em primeiro lugar, é preciso ultrapassar o PT e superar o binarismo instituído na competição política e eleitoral. O raciocínio binário carrega consigo uma estupidez intrínseca, com suas oposições estanques e uma visão de futuro canhestra e inflexível. Depois do desastre eleitoral, o PT e a esquerda, que gira entorno dele, atualizaram esse binarismo com o diagnóstico de que sua derrota corresponde a um “avanço do conservadorismo”. Trata-se de um desdobramento mecânico da fábula do “golpe” e do “Fora Temer”.



Obviamente que há uma ascensão do conservadorismo na opinião pública. Isso é visível no plano cultural, mas ainda não atingiu com vigor a dimensão do político. Aliás, expressando-se por meio de lideranças de extrema direita, nessa dimensão, ele é francamente minoritário. É observável, contudo, que o conservadorismo ganha desenvoltura em confrontação com o binarismo petista, um modo de pensar apodrecido que não serve para nada.



De nada serve também advogar por uma “nova esquerda” buscando repor um passado que atribua a ela estratégias e o espírito de ação inspirado em Che Guevara ou no ativismo de maio de 1968. O mundo mudou substantivamente e isso já ficou para trás há muito tempo. Em paralelo a essa confusão há quem construa a utopia de uma “esquerda movimentista”, na qual a sociedade seja o “grande ator”, em substituição e de costas para os partidos. Os paradigmas seriam a Grécia insurgente do Syriza e a Espanha pré-Podemos: uma perspectiva de grandes ilusões e parcos resultados.



O mimetismo uruguaio é outro modelo reivindicado. Por ele se pensa a refundação do PT por meio de uma Frente Ampla de partidos e movimentos sociais. Essa operação visa a passar ao largo de uma autocrítica rigorosa e de inúmeras questões decisivas, tanto teóricas quanto políticas, deixando-se dominar inteiramente pelo cálculo eleitoral. Parece ser uma “solução” instrumental e retórica, nada mais do que isso.



Todas essas proposições estão fadadas ao fracasso. Elas não enfrentam seriamente o problema e não empreendem verdadeiramente uma ultrapassagem do PT. O tempo exige uma “outra esquerda”, plural, democrática e reformista que possa superar as visões finalistas e ingressar no século 21 com corpo e alma novos.

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Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp.

Gramsci e o Brasil


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