Léo Lince Os acontecimentos da semana serviram para mostrar que o artigo mudou de gênero, mas o substantivo continua a operar no diapasão de sempre. A presidente da República, que na juventude enfrentou a tortura com extrema dignidade e foi anistiada, agora resolveu tomar assento entre os templários da ordem injusta. Do alto de sua nova posição, disparou cavalos telegráficos: não negocia com grevistas, nem cogita de anistia. Ao invés de Violeta Parra (“os famintos pedem pão”), ou do liberal mineiro Milton Campos (mandem o trem pagador), ela optou pela mão pesada da punição exemplar. Uma exigência da máquina mercante. O ministro da Justiça, oriundo das fileiras mais arejadas do petismo, abandonou a antiga leveza, simpática e bem humorada. Agora, corpanzil alargado pela untuosidade do poder, adota ares sombrios que fazem lembrar Gama e Silva. No vértice de uma inusitada articulação de forças, cenho franzido, ele dispara as ameaças típicas da opção preferencial pela linha do confronto. A ostentação da musculatura repressiva do governo federal, inclusive com o uso cada vez mais banalizado das Forças Armadas no papel de polícia, deve ser motivo de preocupação para a cidadania. Ainda mais quando pairam sombras sobre alguns elos da investida desencadeada.
Dizem os do governo que houve autorização judicial para grampear telefones. Tal autorização teria sido assinada por um juiz cujo nome foi mantido em segredo. Qual a razão de tão estranho procedimento? Também nada foi informado sobre o alcance do grampo. Quais foram os atingidos pela autorização secreta? Os líderes grevistas da Bahia e do Rio de Janeiro? Os parlamentares que buscavam mediar negociações também tiveram seus telefones grampeados? São informações importantes para que o cidadão possa avaliar o sentido geral da operação. O império da lei opera na transparência, as maquinações do arbítrio no lusco-fusco da opacidade.
Outra dimensão do acontecido, talvez por conta de antecedentes tão famosos, intriga por demais o cidadão. Causa espanto a rapidez com que trechos seletos de telefonemas grampeados apareceram no mesmo dia, e com absoluta exclusividade, na tela da Globo. Impossível não ficar de pé atrás. Qual a razão da exclusividade? Foi combinado com antecedência? As fitas foram levadas até a emissora por algum estafeta ou foi a própria emissora que operou o grampo? Quem selecionou os trechos a serem exibidos? A emissora? Os agentes da repressão? O próprio ministro? São indagações para as quais a ausência de resposta explica tudo.
Hoje já se sabe que dois senadores petistas, um do Rio outro da Bahia, estão na fita de um dos telefones grampeados. Foram poupados (por razões óbvias?) de aparecer na telinha. A divulgação de trechos seletos de telefonemas grampeados não cumpre, por suposto, qualquer função investigativa, de segurança ou prevenção de malefícios. É pura manipulação da informação para fins de propaganda. Revela, ao mesmo tempo, uma intimidade promíscua entre o agente público e os potentados da mídia grande. Trata-se de um detalhe que parece pequeno, mas que, por si só, confere ao conjunto da operação as feições de uma urdidura tenebrosa.
Uma marca que se confirma com os absurdos cometidos na seqüência. Vejamos, para exemplo, o acontecido no Rio de Janeiro. Apesar do deliberado em assembléia, não houve greve alguma. Houve apenas um buliçoso ato público em pleno coração da cidade, na Cinelândia. Nenhum ônibus queimado, nenhum vandalismo, nenhum confronto ou empurra-empurra. Nada. Apenas um protesto ordeiro e até bem humorado. Uma pauta elementar de reivindicações econômicas. Salários aviltantes, comidos pela carestia crescente. Além de deixar claro, pela volumosa presença, a insatisfação que grassa na base das categorias presentes no protesto.
Apesar da calmaria, os do governo resolveram optar pela continuidade do arreganho repressivo. O líder dos bombeiros do Rio foi preso no aeroporto quando voltava de Salvador, onde participava das negociações. Sem qualquer formalismo legal, não pode sequer falar com a esposa e os filhos que o esperavam. Ele e outros líderes foram levados para o presídio de segurança máxima, em Bangu. Um presídio reservado para condenados, nunca até então usado para prisões preventivas, e para criminosos de alta periculosidade. A agressividade cruel dos governos Dilma e Cabral inaugurou lá uma ala de prisioneiros políticos.
Barbas de molho, cidadãos. O contubérnio de forças articulados no episódio presente pode ser o ensaio geral do que está por vir. Autorizações judiciais secretas, governos submissos aos ditames da máquina mercante, informação manipulada nos canais da mídia oligopolizada. O “estado de exceção”, já anunciado como recurso indispensável para o sucesso dos megaeventos esportivos, sempre esteve entre os desígnios permanentes da máquina mercante. A repressão preventiva não combina com democracia, tampouco com estado de direito. Ecos da doutrina Bush, ela é a ante-sala do arbítrio total, o ovo da serpente. Correio da Cidadania
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