segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Ministro Aguinaldo Veloso e o passado



Memórias em disputa

O oportuno livro escrito por Marta Cioccari e Ana Carneiro, "Retrato da Repressão Política no Campo, Brasil 1962-1985", somando-se às menções da imprensa aos vínculos familiares do ministro das Cidades, oferece uma boa oportunidade para chamar a atenção para a vida dos trabalhadores no campo.

Regina Novaes e Beto Novaes

Fomos professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pesquisamos e publicamos livros e artigos sobre as Ligas Camponesas dos anos de 1960 e sobre o movimento sindical dos trabalhadores rurais na Paraíba nas décadas de 1970 e 1980. Além disso, em várias ocasiões, trabalhamos como assessores do movimento sociais no campo. Por este percurso, temos sido procurados para comentar a nomeação de Aguinaldo Veloso Borges Ribeiro, líder do PP na Câmara dos Deputados, como ministro das Cidades do governo Dilma.

São várias as indagações que buscam respostas sobre o significado político da nomeação de um “Veloso Borges” para o governo da sucessora de Lula. Explicando melhor: o ministro tem o sobrenome Ribeiro, pois é filho de Edvaldo Ribeiro, ex-prefeito de Campina Grande, na época da antiga Arena. Mas seu nome e o sobrenome também remetem ao avô materno que, na memória política local, era publicamente conhecido como usineiro líder do “Grupo da Várzea” ao qual também esteve ligado Zito Buarque Gusmão, casado com outra filha de Aguinaldo-avô. Ambos, sogro e genro, tiveram seus nomes envolvidos em dois assassinatos de lideranças de trabalhadores rurais na Paraíba: João Pedro Teixeira e Margarida Maria Alves. 





Para quem não se lembra, João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, foi brutalmente assassinado em 1962. Recortes de jornais da época documentam as renúncias de parlamentares paraibanos com o objetivo de garantir a imunidade parlamentar a Aguinaldo Veloso Borges, então suplente de deputado. Esta história de luta pela terra e por direitos sociais ficou nacionalmente conhecida por meio do premiado filme de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer. Iniciado após a morte de João Pedro, interrompido em 1964 e retomado 17 anos depois, o documentário de Coutinho registra o reencontro de Elizabeth Teixeira - que vivia longe dos filhos, ameaçada e exilada em seu próprio país – com sua história.

Naquele começo dos anos 1980, em um encontro promovido pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), festejamos a volta de Elizabeth à Paraíba e aos espaços dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo, além de manter permanente contato com o grupo de antropólogos do Museu Nacional que estuda as mudanças sociais no Nordeste, fundamos, com outros colegas da Universidade Federal da Paraíba, ligados aos mestrados de Economia e Sociologia, um grupo de extensão universitária que atuava junto aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios da zona canavieira paraibana, entre os quais se destacava Alagoa Grande e sua presidente, Margarida Maria Alves. Cumprindo seu dever de dirigente sindical, Margarida criou delegacias sindicais em engenhos e usinas; encaminhou ações para a Justiça trabalhista; pela primeira vez logrou uma fiscalização da Delegacia do Trabalho em seu município e, também, participava ativamente das Campanhas Salariais nacionalmente coordenadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

O desfecho desta trajetória sindical foi trágico: Margarida foi assassinada, com tiros de “espingarda doze”, na porta de sua casa em 12 de agosto de 1983. Nesta ocasião, cerca de vinte anos após a morte de João Pedro, o mesmo “Grupo da Várzea” voltou às páginas dos jornais colocando em destaque Zito Buarque Gusmão, administrador da usina Tanques, de propriedade do sogro, Aguinaldo Veloso Borges.

As suspeitas não resultaram em julgamentos e não detiveram os acusados. Nos anos seguintes, Zito Buarque ainda se destacou em matérias sobre violências contra trabalhadores das usinas canavieiras e dirigentes sindicais. Durante a Campanha Salarial de 1984, jornais locais - como a Gazeta do Sertão, União, Diário da Borborema - noticiaram ações de capangas da Usina Tanques que, comandados por Zito Buarque, quebraram os vidros do carro, espancaram trabalhadores e o próprio presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande que havia substituído Margarida Maria Alves. O Grupo da Várzea continuava no poder e, não por acaso, no ano de 1986, Aguinaldo Veloso Borges tornou-se presidente da nacionalmente conhecida União Democrática Ruralista (UDR) que, na Paraíba, congregou donos de modernas destilarias e velhas oligarquias locais. “Coincidentemente”, a UDR foi fundada no dia em que se celebrava o terceiro aniversário de morte de Margarida Maria Alves.

Outros vinte e tantos anos se passaram e a família continua na política: Virgínia Maria Peixoto Veloso Borges, mãe do ministro, também filiada ao PP, é atual prefeita de sua cidade natal, Pilar-PB, e sua irmã, atual deputada estadual, deverá ser candidata à prefeitura do município de Campina Grande. Aguinaldo Veloso Borges Ribeiro, por sua vez, foi titular de Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado da Paraíba e de Ciência e da Tecnologia do município de João Pessoa, foi deputado estadual e, posteriormente, elegeu-se como deputado federal.

Na ocasião de sua indicação para o ministério, quando indagado sobre sua trajetória política, apresentando-se como um político moderno, o futuro ministro das Cidades declarou: “o Brasil e o mundo mudaram, e a dicotomia ‘esquerda e direita’ está superada”. O Brasil mudou, é verdade. Mas sua história não pode ser simplesmente “superada”. Não há como apagar da memória social os fatos que fazem parte da história da democracia no Brasil. Como tratar as repercussões deste passado sobre o presente?

Em primeiro lugar, é importante afastar a idéia de que a violência política “está no sangue”. Teorias deste tipo já justificaram muitas outras atrocidades. São muitos os exemplos históricos de filhos que se diferenciam de seus familiares e inauguram outras trajetórias políticas. O que também não justifica silenciar o passado. Para o próprio ministro das Cidades seria menos constrangedor se as instâncias competentes da Justiça já tivessem julgado – inocentando ou punindo – os acusados dos crimes políticos em questão. Mas, isto não é tudo. Se existem processos que já prescreveram e julgamentos que foram interrompidos ou parciais, a tarefa hoje deveria ser atribuída a uma “Comissão da Verdade” voltada às lutas no campo.

Remeter estes conflitos a poderes e instâncias públicas evitaria constrangimentos pessoais e políticos. Além disto, poderia tornar-se um antídoto contra o disseminado veredicto de que a impunidade e o esquecimento sempre prevalecerão em nossa vida política.

Em segundo lugar, se é verdade que a imprensa tem sido uma fonte imprescindível na reconstrução da memória do passado autoritário, o que se espera hoje é que os meios de comunicação ampliem seu conteúdo e seu escopo para influenciar nos rumos da democracia. No entanto, a própria imprensa no Brasil atual parece se impor uma lógica estreita para definir o que deve ser “notícia”.

Frequentemente, “é notícia” o que pode se transformar em “caso de polícia”. É neste contexto que o repórter pode chegar a perguntar a um pesquisador: “o senhor pode provar que Aguinaldo Veloso Borges mandou matar João Pedro Teixeira e Margarida Maria Alves?” Prevalecendo a abordagem de investigação policial, aborta-se a possibilidade de uma reportagem reflexiva sobre a história do Brasil. A tão desejada “liberdade de imprensa” deveria ser um incentivo para novas pautas jornalísticas, menos limitadas e previsíveis.

Na atual contexto político, o livro Retrato da Repressão Política no Campo, Brasil 1962-1985, escrito por Marta Cioccari e Ana Carneiro, sob a supervisão de Moacir Palmeira, por si, mereceria repercussões na grande imprensa. Mas, nas poucas matérias veiculadas a que tivemos acesso, a obra foi citada apenas com o objetivo de apontar contradições entre setores do governo. Isto porque - publicado pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – o livro reconhece João Pedro Teixeira e Margarida Maria Alves como vítimas de repressão política no campo quando, simultaneamente, o governo federal escolhe um “Veloso Borges” para fazer parte de seu primeiro escalão. Contradições de coalizões políticas podem e devem ser notícia, mas não deveriam ser o único objetivo editorial a ponto de reduzir um livro como este a um “gancho” jornalístico.

Em terceiro lugar, refletir sobre este passado é também uma maneira de dar visibilidade a questões urgentes do presente, algumas das quais, diga-se de passagem, não têm ocupado os lugares de destaque na atual agenda política. Neste sentido, o oportuno livro escrito por Marta Cioccari e Ana Carneiro, somando-se às menções da imprensa aos vínculos familiares do ministro das Cidades, oferece uma boa oportunidade para chamar a atenção para a vida dos trabalhadores no campo. Em um país que avançou em políticas sociais, é urgente atentar para a situação dos trabalhadores que continuam sem acesso à terra, como no tempo de João Pedro Teixeira e sem condições de trabalho digno no eito da cana, como no tempo de Margarida Maria Alves.

Por tudo isto, vale a pena quebrar o silencio sobre o passado.



Regina Novaes é antropóloga e Beto Novaes é economista. Ambos foram professores da Universidade Federal da Paraiba (UFPB), de onde se transferiram para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


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