terça-feira, 23 de outubro de 2018

Como resistir em tempos brutos

“O grande erro [da ditadura] foi 

torturar e não matar”

Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo

ELIANE BRUM

Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma — ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar —então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é.



Ou então você estava muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo. Acontece. E em geral a gente se arrepende do que faz nestes momentos quando a respiração volta ao normal, mas as consequências se estendem, às vezes pela vida toda. Mas agora tem outra chance, e essa é definitiva. É preciso deixar a raiva de lado e votar com a razão, escolher com consciência. Porque se a dupla de “profissionais da violência”, como o próprio Hamilton Mourão definiu, assumir o poder, será muito grave para o país. Quando se vota em profissionais de violência é preciso saber o que esperar.



Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida. Então, não é possível se esconder atrás da corrupção. Nem começar nenhum discurso com “Ele não é inteligente nem preparado, mas...”. Neste caso, é preciso assumir o real desejo de exterminar os que são diferentes. Não dá para votar num racista sem ser racista, num homofóbico sem ser homofóbico, num machista sem ser machista. Este é um limite. Ao fazê-lo, se você não era, se torna um. Mesmo que você for mulher ou homossexual ou negro. E este voto fará parte de sua história. É também o seu legado para os que virão.



O fato de a eleição ser “do contra” não autoriza a imprensa e outros espaços de documentação, análise e interpretação da realidade a igualar o inigualável. Não se trata de dois iguais. Não é isso o que acontece hoje no Brasil. Há um projeto autoritário para o país, que está negando a própria democracia. Jair Bolsonaro efetivamente disse que só aceitaria o resultado da eleição se fosse o vencedor. Depois voltou atrás, mas voltar atrás não elimina aquilo que disse quando exerceu sua tão propagada “sinceridade”. Seu vice, Hamilton Mourão, efetivamente disse que era possível, depois de eleito, em caso de “anarquia”, dar um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.




Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar.



Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo.



Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


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