quinta-feira, 25 de outubro de 2018
Como lutar contra um fascista sem se tornar um deles
A necessidade da ficção no Brasil hoje, ou como lutar contra um fascista sem se tornar um deles
Beatriz Bracher
Talvez o que nossa sensibilidade consiga captar, de forma inconsciente, seja uma substância que ainda não se mostrou em história, não pode ser abraçada ou contestada, mas está presente e interfere na nossa relação uns com os outros. Como uma membrana em nossa córnea, um peso amarrado no tornozelo, uma coleira no pescoço com uma corda muito longa, mas finita, sentimentos coletivos inapreensíveis por nossa consciência diuturna. Às vezes até somos capazes de ouvi-los ou vê-los, mas não há como apreendê-los e, por isso, nos escorrem pelas mãos.
Falar da necessidade da ficção no Brasil em 2018 é, para começo de conversa, falar da relação entre realidade e ficção, um tema discutido, pelo menos, desde Sócrates.
Não iremos tão longe. Tentarei me aproximar de algumas poucas características da ficção (sobre as quais não há consenso) que me parecem torná-la necessária especialmente hoje, no Brasil.
Nesse texto a palavra “ficção” irá se referir apenas a romance, conto, novela e poesia narrativa escritos por um autor, que podem ser um, três ou cinco autores ou uma criação coletiva, o importante é que tenha autoria conhecida. A isso, autoria conhecida, chamarei de “um autor”
* Ficção é uma obra original criada por um autor.
A primeira premissa da ficção é que ela não é verdadeira. O enredo não registra fatos que tenham acontecido, ou tal como aconteceram, e essas pessoas jamais existiram. Este é o ponto de partida do romance. A forma do romance diz a você, claramente, que ela não é fiel ao real. Então, o que queremos dizer com a verdade na literatura?
Pergunta-se Salman Rushdie em uma entrevista. Deixemos a questão da verdade de lado, por enquanto, e sigamos com a não-verdade. Além de não se referir ao real, o que faz uma boa história ser ficcional é ela parecer real. A isso que Aristóteles chamou verossimilhança. Dizemos que uma história não é convincente não porque determinado fato jamais aconteceria na vida real, como um homem voar, mas porque esse fato não tem coerência com a lógica interna da história. Se houver as premissas básicas e a história as seguir, um homem, assim como um tapete, pode perfeitamente voar que iremos reconhecer ali um mundo como se fosse real. Essa é a expressão chave: "como se". É um acordo prévio entre o autor, ou o próprio gênero romance, e o leitor: o que você lerá é como se fosse real.
Seguimos com Rushdie:
Uma vez que aceitamos que histórias não são verdadeiras, podemos entender que um tapete mágico e madame Bovary são inverdades do mesmo tipo, falsas da mesma maneira. Ambos são maneiras de se chegar a verdade pela estrada da inverdade.
E o escritor espanhol Vila-Matas, em entrevista recente:
(...) o mais atraente desse exercício [de escrever ficção] está no fato maravilhoso de que a linguagem não reproduz a realidade, mas a constrói e desconstrói a partir de uma inevitável subjetividade (...)
Subjetividade inevitável porque vem de um lugar pessoal absolutamente irrepitível que o escritor só é capaz de acessar quando escreve, e o leitor, quando lê.
* O referente da ficção não é a realidade factual.
* O poder de envolvimento da ficção tem a ver com um real que é construído e desconstruído a partir de uma inevitável subjetividade.
* A ficção não é refutável nem verificável.
Flaubert, em uma carta a uma amiga, diz: (...) nenhum grande livro chega a conclusões (...). Homero não chega a conclusões, nem Shakespeare, nem Goethe, nem a própria Bíblia.
A work of art is not about this or that kind of life; it has life, diz Auden
De acordo com essa abordagem, a ficção não só não trata da realidade factual em que vivemos, como ela também não é um comentário sobre o mundo.
Mais um item em nossa lista:
* Uma história não é um argumento, não defende um ponto de vista.
Acredito que, em geral, artistas possuem uma sensibilidade específica. Se nasce com ela ou a adquire nas horas de solidão de seu trabalho, não sei dizer. O fato é que, em geral sem se dar conta, ele absorve e coloca no que escreve o que existe de não falado em nosso tempo, funcionando como um fio condutor ou uma esponja.
Talvez o que nossa sensibilidade consiga captar, de forma inconsciente, seja uma substância que ainda não se mostrou em história, não pode ser abraçada ou contestada, mas está presente e interfere na nossa relação uns com os outros. Como uma membrana em nossa córnea, um peso amarrado no tornozelo, uma coleira no pescoço com uma corda muito longa, mas finita, sentimentos coletivos inapreensíveis por nossa consciência diuturna. Às vezes até somos capazes de ouvi-los ou vê-los, mas não há como apreendê-los e, por isso, nos escorrem pelas mãos.
Rubens Figueiredo, um dos melhores romancistas brasileiros da atualidade, além de tradutor de Tolstói e Tchekhov, quando perguntado se a tradução seria também uma criação, disse o seguinte:
Sim, mas é mais justo você dizer o contrário (...). Quando escreve [ficção] você está traduzindo coisas que estão em formas anteriores à linguagem verbal, são outras linguagens, a linguagem da emoção, das imagens, da memória. Isso é tradução, a palavra criação não me inspira nenhuma confiança.
No capítulo final de Elizabeth Costello, romance do sul-africano Coetzee sobre uma escritora australiana de mesmo nome, ela desembarca em uma cidade desconhecida e, para passar por um portão, precisa escrever aos juízes uma declaração de crença. A seguir trechos que uni do diálogo entre os juízes e Elizabeth:
"Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito (...)"
(...)
“E que efeito acha que tem, essa falta de crença, em sua humanidade?”, pergunta o homenzinho.
“Em minha humanidade? E isso importa? O que eu ofereço para aqueles que me leem, a minha contribuição para a sua humanidade, supera, eu espero, o meu próprio vazio a esse respeito.”
* A ficção é um trabalho árduo e solitário. Dito isso, é também fruto de algo coletivo, que não pertence ao autor e que ele não domina inteiramente.
* O escritor, para além de si mesmo, é também esponja e fio condutor de seu tempo.
O que o moralismo canhestro de nossos dias não pode conceber é que haja uma diferença entre o discurso de ódio reprodutor de preconceito, empobrecedor dos sentidos e das relações sociais, e a potência corrosiva e explosiva do ódio na literatura. Neste caso, o efeito é inverso ao estreitamento (...).
Nas páginas da melhor literatura, a força do ódio se converte em alargamento dos sentidos, contra o lugar-comum.
(...)
Proust propõe um ruído entre esses dois elementos heterogêneos (autor e obra), ligados por laços estreitos e complexos. A obra é sempre política, claro, não está desconectada do mundo, mas essa politica não se reduz à identidade ou ao lugar do autor.
Ao desenvolver o ódio, desenvolver no sentido de intensificá-lo até que nos pareça impossível qualquer outra relação entre homens que não aquelas baseadas no ódio, também no rancor e no cinismo, como em Celine, Mishima e em uma genial autora francesa contemporânea, Marie Ndiaye, é possível que o leitor tenha uma experiência limite, de sufocamento, e termine a leitura em um mundo diferente daquele em que vivia quando começou a ler o livro. Que algo tenha se quebrado dentro de sua percepção do mundo, movendo-se alguns milímetros para lá ou para cá. Esse ambiente transformado e transformador é criado por estruturas narrativas originais, distintas da sintaxe dos jornais, discursos políticos e mesmo daquelas que nós usamos para formar o nosso próprio passado.
As experiências modificadoras do mundo pessoal do leitor não têm a ver apenas com sentimentos extremos. A quase imobilidade do protagonista de A fera na selva, de Henry James, e a gentileza anêmica dos personagens de Passeio ao farol, de Virginia Woolf, têm o mesmo efeito. O que acontece é uma suspensão provisória do mundo real e a experiência mental de um outro tempo físico.
Existe a ideia de que não suportamos o caos, a ausência de uma história que organize e justifique nosso passado e nosso presente. Daí viria nosso apego às narrativas com uma visão de mundo clara. Essas narrativas tendem a naturalizar o mundo tal como o construído por elas mesmas. Outro nome para narrativa pode ser “mecanismos”, na medida em que, muitas vezes, têm o objetivo de manter o status quo, “como se” natural. Cito mais uma vez Rubens Figueiredo:
A questão da literatura não é ter um papel social, mas oferecer a experiência de questionar um pouco esses mecanismos e mostrar que eles podem ser desfeitos.
O que a ficção faz, quando faz, é criar um mundo onde entramos desarmados, pois é só de mentirinha, e aí vivemos solitários e sem medo diferentes "naturezas" de mundo. A ficção não propõe uma narrativa alternativa, o seu poder é o de desfazer o mito de naturalidade das já existentes.
A fricção com o mundo, o desmascaramento e a crítica a determinada ideologia não se dá em um discurso e nem apenas em um conteúdo, mas em uma forma específica chamada ficção, onde a originalidade subjetiva é essencial. Casa de bonecas, de Ibsen, ou Madame Bovary, de Flaubert, não ameaçam nosso sistema social machista através do que falam, mas do como falam. Celine, um antissemita declarado, com o rancor mesquinho de suas obras, nos faz entender o caldo pegajoso e profundo em que esse sentimento prolifera. Somos tomados por esse sentimento não porque ele "fala" disso, mas através de suas frases intermináveis, as reticências longas. O retorno a ações miúdas, ao atroz sofrimento sem drama que impregna, como um cheiro ruim e gorduroso, as relações familiares.
Reforçando meu ponto: a ficção não é mais uma narrativa do mundo, ao contrário, a ficção pode funcionar como reveladora da artificialidade das narrativas cotidianas, ou das chamadas grandes narrativas. Artificialidade, nesse caso, não em oposição a verdadeiro, mas em oposição a natural.
* A ficção leva o leitor para um outro tempo mental, onde não é incomum acontecer de suas crenças, seu gênero e idade serem suspensos.
* Essa capacidade da ficção de suspender provisoriamente o real, provoca o que chamamos de ruído ou atrito com este mesmo real.
* A ficção tem o potencial de desnaturalizar as narrativas do nosso tempo.
Voltamos a Rushdie:
Claramente o que significa verdade em ficção é a verdade humana. Não a verdade fotográfica ou jornalística, mas a verdade que reconhecemos nos seres humanos. Como nos comportamos um com o outro? Como nos relacionamos entre nós? Quais as nossas fraquezas e nossos pontos fortes? Como interagimos? Qual é o significado da vida?
Na primeira palestra de Elizabeth Costello, ela é entrevistada por uma jovem repórter que lhe pergunta se é fácil escrever do ponto de vista de um homem. Ela responde:
Fácil? Não. Se fosse fácil não valeria a pena fazer. Essa alteridade é que desafia. Inventar alguém que não é você mesmo. Inventar um mundo onde ele se locomova. Inventar uma Austrália.
Mais adiante, no salão do hotel onde está hospedado com a mãe, o filho de Elizabeth e a repórter conversam:
“Mas minha mãe já foi homem”, ele insiste. “Já foi cachorro também. Ela é capaz de penetrar nos outros com o pensamento, em outras existências. Eu li os livros dela; eu sei. É um poder que ela tem. Não é isto a coisa mais importante da ficção, nos tirar de nós mesmos, nos levar para outras vidas?
Num sentido que parece inverso ao de “ser o outro”, “nos tirar de nós mesmo”, cito uma frase que Graciliano Ramos falou em uma entrevista:
Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportarem de modo0s diferentes, é porque não sou um só.
Ao ler um livro, o personagem é quem nos carrega e através de quem vivemos sentimentos que, aqui fora, seriam talvez fatais ou absolutamente tediosos. No personagem você pode ser ridículo, inconsequente, autoritário, mesquinho, doce, feminino, masculino, velho, papagaio, cachorro e barata. Porque nada nos acontecerá no mundo real, porque a leitura é um ato solitário, porque paro a hora que quiser, porque tudo ali é mentira, inédito e, ao mesmo tempo, reconhecível, por isso posso ir fundo e chegar a um lugar profundamente verdadeiro dentro de mim e ao qual jamais teria acesso, e nem a coragem de tentar, de outra maneira.
Na carta de Flaubert, que citei acima, ele argumenta com sua amiga sobre a inutilidade de investir seu tempo para mudar o mundo. Ele a incentiva a ler e estudar. O que cito aqui não foi escrito em relação à ficção, mas ao "empenho do estudo". Se o cito, quando trato dos personagens ficcionais, é porque a sua maneira de se envolver com o estudo é muito próxima do que sinto quando leio um bom romance:
Por intermédio do pensamento, associe-se a seus irmãos de há três mil anos; absorva todos os seus sofrimentos, todos os seus sonhos, e sentirá como se expandem, juntos, seu coração e sua inteligência; uma simpatia profunda e desmedida virá envolver, como um agasalho, todos os fantasmas e todos os seres.
Em meu romance, Não falei, há uma passagem em que trato de histórias que criamos diariamente:
(...) acontece todos os dias. Precisa ser em um lugar com pessoas desconhecidas, aí as coisas surgem. É a maneira de torná-las conhecidas. Histórias é no que as transformamos para passar o tempo na fila do banco, no banco do ônibus, no balcão da padaria. (...) e assim tornamos as pessoas conhecidas e próximas, fechadas numa história, elas não nos ameaçam.
Essas infinitas histórias cotidianas que, na maior parte das vezes, nem percebemos que estamos criando, funcionam em um sentido inverso ao da ficção, nós trazemos as pessoas para dentro de nosso universo, e não, como na ficção, nos deslocamos para o universo desconhecido de sua história.
A ficção não domestica a ameaça do caos, mas a apresenta em mais de uma faceta, e quem a vive é o eu no corpo de muitos.
Todorov, filósofo e linguista búlgaro, escreveu em A literatura em perigo:
Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista de seu autor. (...) Essa aprendizagem não muda o conteúdo de nosso espírito, mas sim o próprio espírito de quem recebe esse conteúdo; muda mais o aparelho perceptivo do que as coisas percebidas.
* A escrita de ficção e sua leitura são atividades solitárias.
* Sentimos "como se" fôssemos pessoas diferentes de nós, o que nos permite uma mudança na maneira de perceber a realidade.
* A verdade na ficção é a verdade da condição humana.
* A vivência experimentada durante a leitura de ficção muda nosso aparelho perceptivo.
Após analisar Shakespeare, Dante, Cervantes, Milton e por aí até Kafka, Proust, Joyce e Beckett, Harold Bloom, crítico americano, em seu livro O Cânone Ocidental, afirma:
A verdadeira utilidade de Shakespeare ou Cervantes (...) é aumentar nosso próprio eu crescente. Ler a fundo o Cânone não nos fará uma pessoa melhor ou pior, um cidadão mais útil ou nocivo. (...) Tudo o que o Cânone Ocidental pode nos trazer é o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade.
Todorov escreve a respeito do resultado da ficção sobre nós, seus leitores:
(...) a obra literária produz um tremor de sentidos, abala o nosso aparelho de representação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial.
Na carta que já conhecemos, Flaubert escreve:
A humanidade é assim, não se trata de mudá-la, mas de conhecê-la.
Podemos ler essa frase como um manifesto em prol da inação política, do egoísmo e da ausência de empatia pelo próximo. Mas se inventarmos (e não acho que estaremos longe da verdade) que é da ficção que ele está falando, então nos aproximamos do conhecimento que nos levará à simpatia profunda e desmedida [que] virá envolver, como um agasalho, todos os fantasmas e todos os seres.
A que nos referimos quando dizemos: esse quadro tem verdade, esse romance é sincero? Lembro-me agora de uma "boutade" atribuída, parece que erroneamente, a Hemingway, quando lhe perguntaram como ele fazia para escrever.
Você simplesmente senta-se em frente à máquina de escrever, corta suas veias e sangra.
Entendo que essa entrega sangrenta alcançará seu objetivo se conseguir construir uma história que revele uma verdade a seu leitor. Porque a entrega é total de ambos os lados, da escrita e da leitura, porque a ficção pode caminhar por intensidades e confusões que, na realidade, seriam ameaçadoras ou comoventes de uma forma paralisante, é que ela alcança isso que se pode chamar de verdade.
* A utilidade da ficção é o uso correto de nossa solidão.
* A ficção abala e expande nosso aparelho de representação simbólica.
* Escrevemos e lemos ficção para conhecer a humanidade, não para mudá-la.
* A ficção é a estrada pela qual podemos conhecer a verdade (cada vez uma, e sempre profundamente pessoal)
Essa verdade, construída com intensidade, identificação, solidão e entrega desarmada do leitor, é sempre e necessariamente individual. É um acordo a dois entre o livro de ficção e seu leitor. Assim sendo, todos seus efeitos se dão na pessoa e não na coletividade. O que vivemos enquanto lemos um livro, que nos abala e desorienta, exige de nós um “eu” separado de todas as outras pessoas. Por isso acredito que outra característica da ficção é exercitar a autonomia do leitor, a sua independência criativa para sentir e pensar. Autonomia no sentido de libertação, no sentido de conhecer o nosso mundo e nos tornarmos capazes de imaginar outras possibilidades de mundo, de forma muito sincera e completa, sem a ajuda de ninguém.
Última característica de nossa lista:
* A ficção fortalece nossa individualidade.
Brasil, 2018
Hoje, em 2018, estamos vendo no Brasil o crescimento de lideranças que pregam a volta do autoritarismo e, para se contrapor a elas, forças do campo progressista precisam unificar seu discurso. É importante estarmos juntos contra uma ameaça real ao nosso estado democrático, construir uma narrativa única, anular nossas diferenças, nossas contradições, erros e buracos evidentes em um discurso coletivo que passará a ser o nosso.
Como tentei mostrar, a ficção não é apolítica, mas a sua luta está na criação de um espaço oposto ao das trincheiras narrativas: o espaço da autonomia criativa do indivíduo. Nesse sentido, ela é, necessariamente, um contraponto, uma quebra mesmo, das tendências autoritárias de nossos discursos atuais em defesa e contra a democracia. E essa é a sua força política.
Mas então, no final, isso ajuda ou atrapalha nossa entrega às lutas necessárias de nosso tempo?
Suspeito que ajuda, por dois motivos:
1. As estratégias do grupo para se alcançar o objetivo comum precisam ser constantemente atualizadas, o entorno muda, há sutilezas que precisam ser levadas em conta. Mesmo que não se deva questionar as premissas básicas do grupo, nem seu objetivo último, ele só se manterá vivo, inteligente e lúcido, portanto eficaz, se a individualidade de seus membros for aproveitada. E, se eu estiver certa, essa individualidade terá tanto mais autonomia e perspicácia de julgamento, quanto mais tiver sido embebida na ficção, fortificada pela vivência de vários outros "eus".
2. Penso que grupos tendem, muito facilmente, a se tornar autoritários e embrutecedores daqueles que os compõem. Com alguma rapidez e sem nos darmos conta, para combater o autoritarismo vamos nos transformando em seres autoritários, surdos e cegos a nossa própria diversidade e à do adversário, generalizando-o. Sem ouvidos nem olhos, passamos a ser uma grande boca que sabe apenas gritar. Vencedores ou derrotados, teremos, de saída, perdido a batalha contra o autoritarismo.
Definir quem são “eles” contra quem nós nos propomos a lutar é essencial. Eles, para o feminismo, não são os homens, mas o machismo presente nos homens e nas mulheres, que amarra, machuca e, mesmo, mata, tantas de nós, mulheres; para o movimento negro, eles não são simplesmente os brancos, mas o racismo que perverte o pensamento e as ações de todos nós, cuja ação humilhante e cruel amordaça e mesmo tira a vida das pessoas negras. Se isso não estiver claro, nos transformaremos neles, pessoas cheias de certezas e nenhuma dúvida a nos guiar o caminho.
Da mesma maneira, hoje, na luta contra o autoritarismo, eles são os impulsos de agir e reagir como fascistas, eles são o medo, o ódio e a sedução de soluções fáceis.
Escrevo esse texto logo após o primeiro turno de nossas eleições presidenciais. A disputa agora é entre Haddad e Bolsonaro. Independente de quem venha a ser o vitorioso, o ódio que tem alimentado essa campanha continuará entre nós. Ele não tem a ver com campanhas políticas, ele tem a ver conosco, brasileiros, ele constitui, hoje, a trama de nosso tecido social.
Me parece que para reconstruir o país, caso alguém do campo democrático seja o eleito, ou para resistir ao fascismo, caso Bolsonaro seja eleito, teremos que conversar. Sentar e conversar, não para ganhar ou perder a discussão, mas para nos entender. Não haverá reconstrução ou resistência possível sem que o nosso autoritarismo seja entendido e derrotado.
É preciso silêncio, solidão e dúvida. É preciso trair as certezas que sustentam o nosso mundo, trair grupos dos quais fazemos parte, trair nossas origens, para, só então, podermos nos unir criativamente ao nosso grupo e seus discursos necessários para derrotar o racismo, o machismo, o fascismo e todos os movimentos autoritários.
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E, para finalizar, cito uma frase de Swift, escritor irlandês da linhagem dos moralistas, como Thomas Morus, Mishima, Celine e Jean Genet, nas obras de quem a necessidade de definir o certo e o errado é nuclear e, em geral, fadada ao fracasso.
Sempre odiei todas as nações, profissões e porcarias, meu amor limita-se aos indivíduos.
BEATRIZ BRACHER
Beatriz Bracher é uma escritora e roteirista brasileira. Foi uma das fundadoras da Editora 34, na qual trabalhou de 1992 até 2000. Também editou a revista 34 Letras, especializada em literatura e filosofia, entre os anos de 1988 e 1991.
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