Do que devemos chamar as extraordinárias construções intelectuais que são as obras de Darwin, Marx e Freud? Não são estritamente ciências, mesmo que a biologia – incluindo a biologia contemporânea – seja pensada dentro do quadro darwinista. Certamente elas não são filosofias, mesmo que a dialética, esse antigo nome platônico para a filosofia, tenha tido um novo momento através de Marx. Elas não podem ser reduzidas às práticas sobre as quais elas lançam luz, mesmo que a experiência prove que Darwin estava certo, mesmo que a política revolucionária tente verificar a hipótese comunista de Marx, e mesmo se a cura psicanalítica coloca Freud nas fronteiras sempre mutantes da psiquiatria.
Vamos chamar “o século XIX” o tempo que passa da Revolução Francesa até a Revolução Russa. Eu proponho chamar essas três tentativas geniais de pensamento de dispositivos, e alegar que, em certo sentido, esses dispositivos identificam o que o século 19 trouxe, como um novo poder, à história da emancipação da humanidade. Após Darwin, os movimentos da vida e da existência humanas, irrevogavelmente separados de toda transcendência religiosa, foram deixados à imanência de suas próprias leis.
Depois de Marx, a história dos grupos humanos foi removida tanto da opacidade da providência como das imensas forças opressivas da propriedade privada, da família e do Estado. Ela foi deixada ao livre jogo das contradições dentro das quais um futuro igualitário poderia ser escrito – mesmo que fosse com esforço e incerteza. Depois de Freud, entendeu-se que não há alma, cujo treinamento poderia ser sempre de tipo moralizante, opondo-se aos desejos primordiais através dos quais a infância traz aquilo que será. Pelo contrário, é no centro desses desejos, particularmente dos desejos sexuais, que a possível liberdade do sujeito está em jogo – a liberdade do sujeito na medida em que ele cai presa da linguagem, esse sumário da ordem simbólica.
Durante muito tempo, todos os tipos de conservadorismo atacaram esses três grandes dispositivos. É natural. É um fato bem conhecido que, nos Estados Unidos, até hoje, as instituições educacionais são muitas vezes obrigadas a opor o criacionismo bíblico à evolução no sentido darwiniano. A história do anticomunismo praticamente se sobrepõe à da ideologia dominante em todos os grandes países em que o capitalismo-parlamentar reina sob o rótulo de “democracia”. O positivismo psiquiátrico normalizado, que vê desvios e anomalias em todos os lugares, que devem ser combatidos por meio da brutalidade química, tenta desesperadamente “provar” que a psicanálise é uma impostura.
Durante muito tempo, particularmente na França, foram, no entanto, os grandes efeitos emancipadores, em pensamento e ação, de Darwin, Marx e Freud, que prevaleceram, é claro, em meio a argumentos ferozes, revisões agonizantes e críticas criativas. O movimento desses dispositivos dominou a arena intelectual. Os conservadores estavam na defensiva.
Após o vasto processo de normalização em escala global que começou nos anos 80, qualquer tipo de pensamento emancipador ou mesmo meramente crítico é inconveniente. Assim, vimos as tentativas se seguirem, tentando remover todos os vestígios dos grandes dispositivos de pensamento que foram chamados de “ideologias”, enquanto que elas são exatamente a crítica racional da servidão ideológica. A França, de acordo com Marx, “a terra clássica da luta de classes”, encontrou-se sob a ação de pequenos grupos de renegados da “década vermelha” (1965-1975), que estão na linha de frente dessa contração. Nós testemunhamos o surgimento dos “livros negros” do comunismo, da psicanálise, da evolução, e de tudo o que não é igual à estupidez contemporânea: consumir, trabalhar, votar e calar-se.
Entre essas tentativas, que, sob a perspectiva da “modernidade”, reciclam um absurdo liberal obsoleto da década de 1820, os menos detestáveis não são aqueles que são dirigidos por um materialismo do gozo para atuar como uma espécie de vigia, particularmente no que diz respeito à psicanálise. Longe de se relacionar com qualquer tipo de emancipação, o imperativo “Goze!” é aquele que as chamadas sociedades ocidentais nos ordenam obedecer. E isso para que possamos impedir a nós mesmos de organizar o que realmente importa: o processo pelo qual algumas verdades disponíveis são liberadas e que os dispositivos do pensamento costumavam guardar.
Então devemos nos referir por “obscurantismo contemporâneo” a todas as formas, sem exceção, de minar e erradicar o poder contido, em benefício de toda a humanidade, em Darwin, Marx e Freud.
Lavra Palavra
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