Rodrigo Lentz
Sem alarmes e com expressivo protagonismo civil, as Forças Armadas assumem o governo da segurança pública do Rio de Janeiro enquanto avança a militarização da política brasileira
A quarta-feira de cinzas para a democracia foi de chumbo. Voltamos do Carnaval com uma intervenção federal no comando da segurança pública do Rio de Janeiro. Entregue ao General do Comando Militar do Leste, Walter Souza Braga Netto, as Forças Armadas assumem, de forma temporária, a segurança interna do estado com poder de governo. Basta um sopro de história recentíssima para dissipar a surpresa da medida. Desde 2010, rajadas de fumaça anunciam o fogo da exceção se alastrando pelos bosques de nossa frágil democracia. Agora, chegamos naquele momento histórico divisor de águas. Para onde vamos?
Seria prudente, ao menos, reconhecer que o poder político se debandou, a passos claros, para uma “democradura”[1] de novo tipo. Na história republicana, constam 66 intervenções federais em estados e municípios, segundo pesquisa legislativa na presidência da República. Em 88% elas ocorreram em ditaduras. Nas demais, os 12% de intervenção em democracias teve justificativa de natureza política-eleitoral, ocorrida nos governos Epitácio Pessoa/1920 (1), Arthur Bernardes/1923 (1), Juscelino Kubistchek/1957 (1); e de natureza setorial, nos governos Jânio/1961 (2) e Jango/1963 (2). Contudo, o decreto de 2018 é o único com natureza militar e exclusivamente para assumir o governo da segurança interna de uma das unidades da federação.[2]
Portanto, de dez intervenções federais, nove emergiram de ditaduras. Se podemos dizer que historicamente a intervenção federal é uma medida de governo autoritário, é bom saber que a grande maioria foi decretada por nossa última ditadura de segurança nacional, sob o comando das Forças Armadas. Note-se a história que vivemos: governo federal da segurança interna de um estado significa tomar a responsabilidade de aplicação, preventiva e ostensiva, do código penal e das contravenções penais. Engana-se quem está pensando no tráfico de drogas. A vida cotidiana das brasileiras e brasileiros – por enquanto, aqueles do Rio – está nas mãos das Forças Armadas. Essa é nossa nova ordem social, Caetano.
Há, no mínimo, dois furações de violência muito próximos. Primeiro, é institucional. As Forças Armadas negam que tenham governado o país por duas décadas à base de graves violações de direitos humanos. Negaram acesso de informações históricas à Comissão Nacional da Verdade, chamaram de “revanchismo” a prestação de contas, mantêm imunidade judicial civil e, na verdade, se orgulham de seus governos militares, a começar pela fundação da República. A outra é que a decisão política de coerção social será tomada por uma elite, conforme sua interpretação excepcional das leis e da vontade popular. Como pensam? Quais serão os próximos capítulos?
Uma intervenção civil militar de segurança nacional?
Da parte dos militares, há o papel estratégico do General do Exército Sérgio Etchegoyen. Depois da deposição de 2016, assumiu o comando da segurança institucional da presidência. Formando pela Escola Superior de Guerra em 1974, um ano antes da ESG consolidar a doutrina de segurança nacional, é um membro do alto escalão político dos militares que conhece muito bem a ideologia da ditadura.[3] E não parece ter se divorciado dela após a redemocratização.
A público, foi defender a honra familiar contra as conclusões da Comissão Nacional da Verdade. Curiosamente, seu pai, Leo Guedes Etchegoyen, também assumiu a segurança civil de unidade da federação (Rio Grande do Sul) após o golpe de 1964. Na prática, sendo responsável, conforme a CNV, “pela gestão de estruturas” onde ocorreram graves violações de direitos humanos. Chegou a receber Daniel Anthony Mitrione, notório especialista estadunidense em métodos de tortura contra presos políticos, para ministrar curso à Guarda Civil do Estado. Seu tio, Cyro Guedes Etchegoyen, foi chefe de contra informações do Comando de Inteligência do Exército e, segundo a CNV, comandou a “casa da morte” de Petrópolis (RJ). Antes, na ditadura de Vargas, o avô de Sérgio Etchegoyen, Alcido Etchegoyen, também assumiu como chefe da política de uma unidade da federação (Distrito Federal).[4]
Afora os exemplos familiares sobre as práticas de uma interdição federal, a formação de Etchegoyen pela doutrina da ESG tem seus efeitos. Primeiro, é o método de planejamento estratégico, baseado em informações de inteligência, análise de conjuntura, elaboração de cenários e linhas de ação. Embora desconheçamos o teor dessas informações estratégicas, o fato é que, desde 2010, ocorrem as operações de Garantia da Lei e da Ordem, de caráter subsidiário ao comando institucional do governo civil. Somente em 2017, a Lei 13.491 alterou o código de processo penal para transferir a competência dos crimes cometidos por militares em ação, inclusive os dolosos contra a vida (execução sumária, por exemplo), para a justiça militar. Nessa lei, uma das três hipóteses seria “os crimes praticados no contexto de atividade de natureza militar”. Ato contínuo, o parágrafo único do art. 2º, do decreto 9.288/2018, é taxativo: o cargo de interventor é de natureza militar. Quer dizer, a intervenção de hoje assegurou autonomia militar para “prestar contas” a si mesmo sobre eventuais graves violações de direitos humanos. Há um claro planejamento.
Estejamos preparados para o pior. Avizinha-se nos presídios e nas periferias o cheiro de morte e “pinhosol”. Comunidades, há décadas sufocadas por uma ordem militarizada (tráfico, milícia e polícia), serão jogadas de vez no teatro de operações. Sem falar nos jovens soldados, em sua maioria negros. “Não importa”, “guerra é guerra”, mas com algumas diferenças. Como Sotelo Fellipe falou, nela opera a inversão de Clausewitz: da guerra como extensão da política para a política como extensão da guerra. Trata-se da guerra contemporânea, da estratégia militar indireta que aderiu à tradução de Carl Schmit para o antagonismo político: é preciso neutralizar e eliminar o inimigo.[5] Eis a guerra há tempos em curso, aprimorada com o chamado Lawfare (guerra jurídica) e as operações psicológicas, como muito bem descreveu o jornalista argentino Santiago Gómez. Não sendo suficiente, é hora de intensificar o método tradicional militar, com uso combinado.
Se fosse pouco drama, a intervenção federal corresponde a uma escala de gravidade no planejamento estratégico. Depois dela, vem o estado de defesa e o estado de sítio. E depois vem…? A intervenção em novos estados? A extensão da intervenção por quatro anos, tempo para um governo militar reestruturar a segurança pública? O adiamento das eleições, por questão de segurança nacional? O Rio é um laboratório de uma intervenção em todo o país? Em 1958 e 1959, a Escola Superior de Guerra instruía a elite civil-militar sobre um segundo tipo de “governo militar”, indireto, que assume temporariamente os “assuntos civis”. O estudo, inspirado na experiência de outros países, era enfático: sua aplicação no caso brasileiro deverá sofrer as imposições geográficas e culturais.[6] Dois anos depois, quase assumiram o governo. Com o golpe de 1964, a doutrina ganhou a prática como laboratório. E agora?
A viga mestra da sociedade
Nenhum governo militar – da segurança, o que dirá das demais áreas – existe sem participação civil. Não por menos, presidente da República, governador do estado, presidente da Câmara, presidente do Senado, ministro da Justiça, ministro da Economia, ministro do Planejamento, todos eles civis, determinando a intervenção política, convocando os militares e lhes conferindo poderes de exceção. E o Congresso Nacional, fruto de eleição direta?
Quem acompanha o noticiário da Globo percebe sem maiores dificuldades uma cobertura de alarme, pânico, caos e deslegitimação do poder político local sobre a segurança pública. E de aprovação da intervenção. Após o decreto, a Globo defendeu a extensão do prazo da intervenção. E a Federação da Indústria (Firjan) fez anúncio em apoio. Apesar da instituição militar fazer parte do crime organizado, praticando os métodos da corrupção e do terrorismo de Estado, a sensação de desordem pública caminha para militarizar ainda mais. Por isso, não se trata de uma intervenção militar, mas de uma intervenção civil-militar.
Há muitos traços com a doutrina de segurança nacional. É imprescindível que a adesão civil confira legitimidade para a atuação militar. Uma intervenção dessas exige um significativo “poder psicossocial” nacional. Como disse o General Villas-Boas, não somente a carta branca dos “poderes constitucionais” (poder político nacional), mas a colaboração “das instituições e, eventualmente, da população” será fundamental. Todos os poderes nacionais passam a ser requisitados em fazer o necessário para o retorno da “ordem pública” que ameaça a segurança nacional.
Para onde vamos?
No caso da segurança pública, a intervenção civil-militar é a expressão da falência da “coexistência pacífica” do Estado nacional com a pressão interna e externa que representa o crime organizado. O método da corrupção e do terrorismo de Estado está em crise, colocando em risco o poder vital do Estado que é a ordem pública, quer dizer, o domínio dos conflitos de distribuição de riqueza e do poder político, seja ele por consenso forjado ou pelo uso sistemático da violência estatal.
Porém, o avanço dos militares na política pode ser visto como um desdobramento da politização do judiciário, quer dizer, uma nova fase do “freio de arrumação” de Ayres Britto (ex-ministro do STF): a militarização da política. Não há nada de novo na estratégia, “apenas” a intensificação de novos métodos. Depois do impedimento de Dilma Rousseff, opera uma intervenção política das elites nacionais na direção de uma “reorganização” da ordem de dominação social. Representação política, mercados estratégicos, direitos sociais, monopólio da violência e poder político do pacto federativo estão em franca cirurgia. Como ocorreu em 1964 e em toda a vida republicana do país, o pacto autoritário entre civis e militares está em marcha. E a fratura do pacto constitucional pós-ditadura, exposta.
Sendo otimista, pode ser que a militarização da política tenda a incluir na disputa de poder o campo militar. Estabelecer um diálogo programático com os militares que apresente uma forte resistência democrática para conter um natural desejo crescente de poder, alimentando o cenário de um governo militar. Há militares e oficiais democráticos, outros que divergem da leitura de conjuntura, nas análises e nas linhas de ação.
Mas o cenário é adverso, especialmente no seio civil. Há uma opinião pública forjada a favor da intervenção civil-militar, apoiada na “natureza humana” de ordem e progresso e pela teoria do “mal necessário”. Na politização do judiciário, algumas querelas constitucionais poderão opor constrangimento. Primeiro, a inconstitucionalidade formal pela ausência da consulta ao Conselho da República (art. 90, inciso I, CF/88). Segundo, pela natureza militar da intervenção, como bem apontou a jurista Eloísa Machado de Almeida (FGV/SP). Terceiro, sobre o real termo da extensão da suspensão de emendas constitucionais (reforma da Previdência), se da simples tramitação à promulgação. Quarto, do desvio de finalidade caso seja burlado por um decreto da GLO. E a própria jurisdição militar, que ainda segue sem expressa admissão constitucional. É hora de juízes e do judiciário recuar ou se abraçar na intervenção civil militar, por isso precisam receber o peso da resistência democrática.
Por fim, parece inescapável que todas as forças democráticas tenham uma alta dose de realismo para ler a conjuntura, enxergar palmos a mais além do cálculo eleitoral. É até comovente ver militantes acreditarem que Lula estará na urna e, caso barrado, conseguirá alavancar um sucessor. É melhor sermos (alguma vez) surpreendidos pela frágil institucionalidade do que reiteradamente decepcionados com ela. Com olhos de lince, Luiz Eduardo Soares apontou para uma “bolsonarização” sem Bolsonaro, num franco lançamento de um governo de direita conversadora com base na ordem (intervenção de natureza militar) e progresso (reformas e abertura de capitais). Teremos eleição, ela foi necessária até na última ditadura para a legitimação da intervenção civil-militar. Porém, há um risco alto de transcorrerem em tempo e forma distinta. É bom lembrar que a concepção de democracia dessa elite interventora admite a eleição indireta, por exemplo. Assim como mudanças no calendário eleitoral por essa via.
Neste modesto ver, a saída passa pelo incipiente ensaio da frente programática dos partidos de centro-esquerda (Psol, PSB, PDT, PT). Sem um plano de poder democrático a curto prazo, com acordo sobre a competição interna, que enfrente a franca intervenção civil-militar, seremos tragados pela história. Rua, urna e gabinetes somente serão conquistados, com poder de resistência real, se tivermos bandeiras democráticas e propostas pragmáticas para ganhar a sociedade, nossa trincheira. Antes tarde, do que mais tarde ainda, se já não for.
*Rodrigo Lentz é advogado, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese “As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88”.
[1] Termo originalmente usado Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter.
[2] No caso do Rio de Janeiro, é a segunda intervenção em períodos democráticos, sendo a primeira decretada por Arthur Bernardes, em 1923, com interventor civil.
[3] BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. Ano 1975, Rio de Janeiro.
[4] Ver volume 1, p.861; p.868
[5] Ver o Manual Básico da ESG de 1975, p.279-294;
[6] Ver: BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Governo militar. 1958/1959, Rio de Janeiro.
Le monde Diplomatique
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