terça-feira, 1 de setembro de 2009

Dona Adelaide, a Mãe Espírita


Dona Adelaide é espírita. Dirige uma fubica verde de algum ano distante da década de oitenta, com um adesivo que diz: O Acaso Não Existe: Leia Kardec. Júlia é seu carma. Eu e Murilo estávamos por perto em uma das vezes em que falou isso. Pensei: que conveniente ter pais assim, nada nunca é sua culpa, não importa quantas merdas você faça, porque, afinal, tudo está escrito, você é o carma deles e eles têm mais é que engolir sua estrelice, aturar sua insegurança e alimentar sua insensibilidade. E Murilo pensou: que estranho viver em um universo pré-determinado, onde o acaso não existe. Como será que conciliam isso com o cristianismo e os conceitos de livre-arbítrio, do céu e do inferno? Preciso ler sobre o assunto. E dona Adelaide só suspirava.
Dona Adelaide nunca trabalhou, não tem hobbies, não gosta de ler, não sabe tricotar e mal acompanha as novelas: sempre se dedicou somente à família, ao marido e aos filhos. Mulheres assim, quando perdem as vítimas de seus obsessivos desvelos, quando morre o marido, quando o filho apóia a amante do pai, elas se grudam à filha que sobrou, mesmo ela sendo artista, alienada e amalucada.
Restaram só as duas naquele casarão e dona Adelaide, bobinha, devaneou que ela e a filha agora é que se amigariam, reciclariam seus problemas, debitariam companhia uma na outra, ah vai ser tão gostoso, só eu e minha filhinha, nós mulheres, precisar de homem pra quê?, ter Julinha ao meu lado já me basta, mas a doce Julinha prontamente se mudou pra cima da garagem, a uns cinqüenta metros de distância, e construiu ali um apartamento e um ateliê, com entrada própria, pra não ter que nem ver a mãe, aquela água de bacalhau, cimento de secagem retardada, coca-cola sem gás, e Júlia só se refere à mãe assim, dona Adelaide na terra e o diabo no inferno, você reclama da sua mãe, Carla, porque não conhece a minha!, e Júlia parece não perceber que dona Adelaide, a déspota ensandecida, nunca telefona, nunca aparece, nunca pergunta da sua vida, nada, e se mantém dolorosamente à distância por medo de desagradar a narcisóide filhinha.
Nem sempre o novelo assim se desenrola: às vezes, Júlia fica carente, e aí sim é muito cômodo ter a mãe à disposição, abanando o rabinho quando a filha se digna a filar sua comida, e as duas jantam, conversam, se paparicam. Mas quando dona Adelaide se sente sozinha, ela permanece sozinha, naquela solidão espessa de quem não tem nada o que fazer, nem livros pra ler, nem netos pra cuidar, nem bordados a tricotar. Pra que correr o risco de melindrar a filha temperamental? Depois ela se intumesce e vai embora e eu fico aqui desdenhada. Pra piorar, Júlia era artista. Ou seja, seus rodopios e desvarios eram não só o carma de dona Adelaide como também ossos do ofício. Artistas não são todos assim? E dona Adelaide suspira, e acompanha uma quase-desconhecida até a casa de sua filha, e começa a limpar resignada o chão do banheiro.

E aí? Vai querer ser a última pessoa a ler?

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