quarta-feira, 5 de setembro de 2018

'Lucky' é tributo à arte de Harry D. Stanton


Longa usa a ideia de rotina para exaltar a vida e avaliar legado do ator

Luiz Carlos Merten, O Estado de S.Paulo

Jack Nicholson, com quem Harry Dean Stanton dividiu um apartamento quando jovem - drogas, mulheres e rock’n’roll -, dizia que o amigo não era um gozador de verdade porque se preocupava demais com as coisas. “Harry sempre foi uma das raras entidades imprevisíveis do planeta”, sentenciou. E para Sam Shepard, outro amigo, outro admirador, que escreveu para ele o papel de Travis em Paris, Texas, de Wim Wenders, o personagem imortalizado por Harry era o rei da ‘raggedy’. Um eterno maltrapilho, físico e emocional.

Lucky

Harry Dean Stanton morreu em 15 de setembro, aos 91 anos. Por uma dessas circunstâncias totalmente imprevistas, Shepard morreu antes dele - em julho, aos 73. Pois 91 é a mesma idade de Lucky, no filme de John Carroll Lynch em cartaz. Lucky traz no rosto e no corpo as marcas da idade, e da doença. Está morrendo, como Harry Dean, quando fez o filme. Ele ainda fez outro, uma participação, mas Lucky será ‘o’ filme póstumo do ator. O seu legado. De cara, uma tartaruga atravessa a tela. Sabemos depois que ela se chama Roosevelt, como o ex-presidente norte-americano. Roosevelt está fugindo de seu dono, e ele - David Lynch - vai se queixar para Lucky/Harry Dean Stanton.



Pode uma tartaruga fugir? Esconder-se? A tartaruga é uma metáfora do próprio Lucky. Ele também veio para esse fim de mundo para se esconder, ou em busca de revelação. Lucky caminha com dificuldade. E está morrendo. Ateu, em face da proximidade da morte, pergunta-se se não será melhor acreditar em alguma coisa? Discute o que é, afinal, o realismo. Lucky, o filme, é um tributo de John Carroll Lynch à arte de Harry Dean Stanton. John Carroll é ator, e dos mais conhecidos coadjuvantes de Hollywood. Apesar do nome, se tiver algum parentesco com David Lynch, será coisa distante. Mas David, com certeza, ao aceitar a participação como ator, quis homenagear seu intérprete em Coração Selvagem e Twin Peaks.



Certas conversas de Lucky no bar têm um tom absurdo - surreal? - que parece deslocado. Evocam Twin Peaks. E também é impossível não pensar em História Real. O menos lynchiano dos filmes que Lynch fez e, paradoxalmente, o maior - embora essa seja uma afirmação controversa. Richard Farnsworth fez lindamente o papel do idoso que atravessava a ‘América’ no seu carro de jardim. O filme é de 1999, há 18 anos. Harry Dean, com 73, era muito novo para o papel. Hoje, seria perfeito, e o filme talvez fosse outro, com a informação que sua persona teria trazido para o público. Não acontece muita coisa em Lucky. Acontece tudo. A tartaruga foge, Harry Dean desmaia, vai ao médico. Acorda todo dia para mais um dia - menos um dia, como gostava de dizer Mário Peixoto autor do mítico Limite.



Lucky vai ao bar, paquera (ainda!), joga, conversa, vê TV. Nada de transcendental, mas uma certa ideia de ‘rotina’. A morte ronda o personagem, e a direção e o roteiro reforçam o vínculo de Harry Dean com Lucky. Ou será o fato de o ator haver morrido que torna o personagem tão parecido. O importante - não é um filme sobre a morte. Em todos os pequenos gestos de Lucky, John Carroll esculpe uma ideia de resistência. De vida.



Estadão



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...