Pablo Ortellado
Está instigante a pesquisa sobre as guerras culturais no Brasil que estamos desenvolvendo. A medida que vamos recolhendo dados históricos, revisando a literatura e processando dados das redes sociais, vamos tentando intuir o filme a partir dos fragmentos de fotograma. O estágio atual da hipótese é a seguinte.
Como o Andrew Hartmann sugere, quem disparou o primeiro tiro das guerras culturais foram os novos movimentos sociais — sobretudo o movimento negro, o movimento de mulheres e o movimento gay (que adotava esse nome antes da nomenclatura LGBTT). Eles exigiram reconhecimento, ampliaram direitos e politizaram as relações da vida privada. Ao contrário dos movimentos que os precederam (o movimento sufragista e o abolicionismo, por exemplo), eles não se limitaram a exigir transformações legislativas, mas queriam que as modificações legislativas amparassem mudanças nos costumes e nas relações privadas, transformando o pessoal em político. Foi essa ênfase nas relações privadas que colocou os valores e as visões de mundo no centro do debate político.
Foi preciso vinte anos de avanço em direitos e mudança de comportamento para que os conservadores entendessem o processo e reagissem, adotando também eles os valores da vida cotidiana como o centro do debate político. É essa mudança de postura dos setores conservadores que alguns chamam de ascensão do conservadorismo e outros de “guerras culturais”.
No final dos anos 1980, nos Estados Unidos, James Hunter teve que convencer o seu público da existência do seu objeto, uma mudança de foco do debate político, que deixava de ter como centro as questões sociais e econômicas e passava a ter como ênfase as questões morais: aborto, porte de armas, conteúdo da educação pública, casamento gay, legalização das drogas etc. Essa aparente emergência, no entanto, é, na verdade, o conservadorismo se adequando aos termos impostos pelos novos movimentos sociais para tentar fazer frente a eles.
No Brasil, podemos ler os episódios das guerras culturais desde os anos 1990, mas sobretudo nos anos 2000 e 2010 também como reação ao avanço dos movimentos. Temos assim o debate sobre cotas nas quais conservadores acusam os proponentes da medida de racializar uma sociedade brasileira razoavelmente integrada; temos defensores de uma definição religiosa e biologicamente restrita de casamento que acusam os gays de destruírem a normatividade heterossexual da família; e temos também os defensores das relações tradicionais entre os gêneros que acusam as feministas de politizar, regular e limitar as relações íntimas ao propor medidas punitivas contra a agressão, o assédio e o estupro. Experimentos de cotas em universidades como a UERJ e UnB, políticas nacionais de cotas referendadas pelo STF, a lei Maria da Penha e a lei contra o assédio sexual, os projetos de lei de criminalização da homofobia e o reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo são marcos legislativos em tornos dos quais um forte debate público se estruturou.
Essa polarização moral estrutura dois campos que não admitem mais posições intermediárias, porque não mais opõem políticas sociais e econômicas que podem ser combinadas e matizadas, mas visões morais de mundo que são incomensuráveis. De um lado, defensores da velha ordem social, reacionários no sentido próprio da palavra que defendem uma ordem moral baseada numa autoridade que trate o desvio com punição; de outro, defensores de uma ordem condescendente e inclusiva que creem que o desvio deve ser enfrentado com compreensão e tolerância. As guerras culturais não são apenas a emergência dessas visões de mundo para o centro do debate político, mas também o alinhamento e a colonização dos temas de política econômica e social por essas visões morais de mundo. No Brasil a análise das redes sociais mostra que esse alinhamento aconteceu nas eleições de 2014 quando os campos dos novos movimentos se fundiu com a esquerda institucional, enquanto o campo da reação conservadora se fundiu com a direita liberal. Desde então vivemos uma polarização sem precedente recente.
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Pablo Ortellado, Professor de Gestão de Políticas Públicas na empresa EACH-USP.
Reporterninja.wordpress
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