segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
Confusão mental, a estratégia política oculta na questão do Estatuto da Família
Marcia Tiburi
Quem entre nós não está estarrecido com o chamado Estatuto da Família tal como é proposto pelos deputados neofundamentalistas do congresso brasileiro atual, homens cujas características éticas e políticas, morais e psíquicas são inadjetiváveis?
O Estatuto da Família é uma dessas aberrações antipolíticas caracterizadas pelo uso da estratégia do estado de exceção. Todo mundo sabe que esse estatuto se impõe como lei autoritária contra um regime democrático vivido na esfera da vida cotidiana. Não se trata apenas de privilegiar um tipo de família (caracterizada pela “pureza” bem ao gosto fascista), mas de distorcer o sentido de relações humanas que nascem com base em afetos e levam as pessoas a se reunirem no arranjo sócio-cultural chamado família.
A proposta do Estatuto não coloca apenas uma lei para regulamentar o amor, mas o próprio “nonsense” no lugar de qualquer regra.
(Me perdoem a didática, ou o que caberia melhor aqui como uma nota de rodapé, mas sei que sou lida por pessoas muito jovens, e meu ofício de professora, me obrigada a traduzir: Nonsense é um termo que significa “sem sentido”, eu o uso aqui com um única intenção: favorecer a presença de estranhezas na nossa língua. Lembro de Adorno falando que os estrangeirismos são os judeus da linguagem e penso que uma das tarefas da educação é colocar as pessoas em contato com conteúdos que não se conhecem, com o que não é consensual, com o que pertence a uma outra tradição, daí a importância de outras palavras, outros autores, outras narrativas, outras visões de mundo. Ao mesmo tempo, eu penso, naqueles que, prepotentemente, sentam sobre o ovo da ignorância para chocá-lo, aqueles que não tem a mínima curiosidade sobre nada, que não tem relação alguma com o conhecimento… Penso que, agora, se eu sugerisse a um deles que revisse sua proposta como um caso de nonsense, que ele nem sequer me ouviria, e que talvez simplesmente me jogaria de volta o que tinha ouvido como quem é incapaz de avaliar a si mesmo a partir da crítica. E eu digo crítica, com todo o respeito, por que se trata de respeito: a crítica está no extremo oposto do rebaixamento da linguagem a xingamento que vemos por todos os lados… )
Eu preferia encontrar uma expressão em outra língua, gostaria de ter cultura africana, ameríndia, gostaria de poder usar outra epistemologia – e talvez o leitor me ajude a encontrar – para definir melhor o que chamamos de “nonsense”. Como será que o pensamento ameríndio se relaciona com o que não tem sentido? Será que para as cosmologias brasileiras há essa questão? Coloco a questão dentro desses limites da minha expressão para deixar claro que há muito a ser pensado além daquilo que acreditamos e que nos habituamos a compreender dentro da nossa pobre epistemologia, inclusive aquela do senso comum, a partir da qual sempre partimos. Uso a expressão “nonsense” por falta de termo melhor e peço desculpas por meus limites. Se conhecer a própria ignorância é sempre um antídoto contra a prepotência, então, procuro o meu caminho.
O nonsense, a meu ver, nos ajuda aqui a entender a estratégia que está em jogo na invenção bizarra do Estatuto da Família. E peço a atenção do leitor para ver se consigo, humildemente, colocar o meu argumento.
Primo Levi e os sapatos
Lembro de uma das histórias contadas por Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz na Alemanha nazista. Das tantas histórias de violência que ele nos conta em “É isso um homem?” uma sempre me deixou muito impressionada. É a história dos sapatos.
Ao chegar no campo de concentração ele e seus companheiros são despidos de tudo, roupas, objetos pessoais em geral. Mas com os sapatos ocorre algo muito estranho. Os soldados ordenam que os homens despidos, separados por dois metros de distância uns dos outros, disponham seus sapatos com cuidado para que não sejam roubados. Primo Levi fala de como ficou estarrecido tentando entender quem poderia roubar sapatos ali, naquelas circunstâncias. Um alemão manda que coloquem os sapatos em um canto. Os prisioneiros obedecem. Então, acontece o absurdo. Com uma vassoura, outro alemão vem e varre os sapatos para fora. São 96 pares de sapatos que se misturam para nunca mais serem encontrados.
O absurdo continua. Com o tempo, vivendo no campo, os prisioneiros poderão encontrar, com a permissão de um único golpe de olho, um único sapato que poderá servir em um dos seus pés. No campo, diz Levi, “a morte começa pelos sapatos” que passam a ser instrumentos de tortura e, ao mesmo tempo, objetos valiosos no frio e nas demais condições abjetas a que os prisioneiros são condenados. Primo Levi está falando do uso do nonsense para humilhar aquelas pessoas ali presas. Está falando de como era importante perturbar aquela gente toda para que se submetessem, como baratas tontas, ao que estivesse por vir.
Os prisioneiros nunca mais encontraram seus pares de sapatos. Isso quer dizer, nunca puderam recuperar nada, nem sequer a capacidade de compreender. Porque não havia nada para compreender diante da aniquilação.
Talvez possamos pensar nesses pares de sapatos a reencontrar. Talvez eles possam ser o símbolo da esperança de que, apesar de todos os esforços de nos enlouquecer, ainda permanecemos capazes de entender. Que poderemos ir além do estarrecimento.
Auschwitz é aqui.
Todo mundo sabe que Auschwitz também se tornou uma metáfora. Podemos dizer, então, que Auschwitz é aqui. Jovens negros assassinados, a matança dos indígenas, das travestis, das mulheres, dos homossexuais, fazem parte de um projeto de extermínio que conhecemos bem.
Esse projeto de extermínio não funcionará sem causar confusão mental, tanto psíquica quando teórica na população.
Causar confusão é uma estratégia tão interessante quanto canalha. Estratégia do poder para diluir a capacidade de pensar. Minar o entendimento.
O fascismo elevado a forma do jogo político é isso: ele precisa confundir você antes de te exterminar. A televisão, meio de comunicação que precisamos compreender e ocupar mais do que nunca, visa diluir a capacidade de pensar, minar o entendimento. Que ela nos distraia é apenas o lado mais suave da incrível confusão mental que ela produz. Sua estratégia é não apenas mentir, mas também provocar confusão mental, tanto teórica quanto psíquica.
Ora, qual a função básica do Estatuto da Família, bem como de todas essas PLs bizarras que nos assustam hoje? Qual o propósito dos deputados neofundamentalistas do congresso brasileiro atual?
Não é privilegiar um tipo único de família. Isso é o de menos. Não é apenas construir uma fachada para a manutenção da corrupção da qual eles são os mais espertos mafiosos ocultos atrás de um discurso religioso vulgaríssimo. Não é somente humilhar a forma alheia de amar, nem somente ocultar sua própria estratégia de culpabilização que leva mais fiéis à igreja e às urnas e às televisões e, assim, à publicidade e ao consumo e a todo o dispositivo do capital. A família é um grande negócio, sabemos disso desde todos os tempos e de todas as igrejas, e de todas as propagandas de margarina…
As igrejas neopentecostais usam as mesmas estratégias que todas as igrejas já usaram das quais só a garantia de um estado laico pode nos proteger. Verdade que sem o estatuto da família o grande negócio das igrejas neopentecostais corre o risco de falir, mas há mais que isso.
Além de envergonhar os evangélicos democráticos e progressistas, além de manter os fiéis das igrejas submetidos à ignorância, a tentativa de definir o que é família e de impor um estatuto sobre ela, um estatuto evidentemente baseado no ódio ao outro, se sustenta não apenas na confiança no poder da ignorância, mas nesse desentendimento geral criado pelo estado de “nonsense”. É importante que não haja reflexão, que ninguém entenda o que está se passando, que todos fiquem perplexos enquanto outros não se importem. Tenho visto tantos ativistas estarrecidos e impotentes, mas eles não param de lutar porque sabem que tudo o que este estado de nonsense pede é que deixemos a esperança de lado e que entreguemos os pontos. Nos termos de Primo Levi, que não procuremos os nossos sapatos que compõem um par.
Todos os capitalismos e todas as religiões sempre tentaram abusar das famílias, inventam-nas, tanto quanto as desejam destruir. Esse jogo sujo continua com agentes no poder que sabem manipular o estado de exceção. Contra isso, apenas a luta diária que não pode ter fim. Ela é a luta da reflexão contra a estupidez, a luta política contra a antipolítica, a luta ética que implica o reconhecimento do outro contra a morte, a sua morte projetada na humilhação diária em nome da ignorância.
Carta Capital
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