Doidos varridos são os outros |
Mouzar Benedito.
Recentemente topei com um texto de Jean Léry que já conhecia, mas não me lembrava bem. Jean Léry era um pastor calvinista que em 1536 desembarcou na baía de Guanabara, onde Villegaignon tentava fundar uma colônia francesa, a França Antártica.
De volta à França, Léry publicou em 1578 um livro chamado Narrativa de uma viagem feita à terra do Brasil. O texto a que me refiro é parte desse livro.
No título que dei a esta crônica, o nome João Ostra deve-se a um dado histórico que aconteceu mesmo. Na língua tupi não existe a consoante L, e o R, não tem a pronúncia “forte”, como no português. Mesmo que esteja no início da palavra, é pronunciado como se estivesse no meio.
Então, Léry, na pronúncia tupi, é reri (o R do início, de RE, é pronunciado como o do meio, em RI). E reri em tupi é ostra. Os tupinambás achavam muito gozado o nome dele, que pode ser traduzido como João Ostra.
Mas vamos ao que interessa, o texto. Nele Léry narra uma conversa com um índio. Antes disso, um parêntese: adaptei o texto à linguagem coloquial. Não sei por que nos diálogos de livros como esse a fala de todo mundo, inclusive índios, é como se fosse algo de Shakespeare, usando sempre a segunda pessoa do plural, nos verbos. São cheios de “sois isso”, “de onde vindes”, “vereis”… Podemos mudar isso sem prejudicar o sentido das falas.
Lá vai:
“Os tupinambás muito se admiram de os franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de buscar aqui o pau-brasil. Uma vez, um velho me perguntou:
― Por que vocês, franceses e portugueses, vêm buscar lenha tão longe? Não tem madeira na terra de vocês?
Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que buscávamos não para queimar, como ele supunha, mas para extrair tinta dela e tingir, como eles mesmos faziam com seus fios de algodão e suas plumas.
O velho retrucou imediatamente:
― E vocês precisam de muito?
― Sim ― respondi. ― No nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que vocês podem imaginar, e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados.
― Ah! ― retrucou o selvagem. ― Você me conta maravilhas…
E, depois de pensar no que eu disse, acrescentou:
― Mas esses homens tão ricos não morrem?
― Sim ― disse eu. ― Morrem como os outros.
Mas os selvagens são grandes conversadores e costumam ir até o fim em qualquer assunto. Por isso, me perguntou de novo:
― E quando morrem, para quem fica o que deixam?
― Para os seus filhos ― respondi. ― Se não tiver filhos, para os irmãos ou parentes mais próximos.
― Na verdade ― continuou o velho que, como vão ver, não era nenhum imbecil ―, agora vejo que vocês franceses são todos uns loucos varridos, pois atravessam o mar e sofrem grandes incômodos, como dizem quando chegam aqui, e trabalham tanto para amontoar riquezas para seus filhos ou para aqueles que sobrevivem a vocês! Não será a terra que lhes alimentou suficiente para alimentar a eles também? Nós temos pais, mães e filhos a quem amamos, mas estamos certos de que, depois da nossa morte, a terra que nos alimentou também alimentará a eles. Por isso, descansamos sem maiores cuidados.”
Blog da Boitempo
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