sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Quatro estações em Havana

Robson de Freitas Pereira

Dirigida pelo espanhol Felix Vizcarret e baseada nos livros de Leonardo Padura que também escreveu o roteiro a quatro mãos com Lucia López Coll (sua esposa), a série está disponível desde o final do ano passado. Talvez por ter sido lançada perto do Natal, não tenha recebido a devida atenção ou circulação. Afinal, um filme rodado em Cuba… Cuja capital, Havana é personagem. Sua arquitetura, geografia, movimentação urbana, cores intensas, chuva e fumaças formam com os enredos e os personagens principais um painel primoroso político e social de um país situado no ano de 1989. Sem maniqueísmos, mas com a riqueza de um afresco que não teme a diversidade e a complexidade da vida seja ela em Havana, Berlim ou Porto Alegre.


Um pouco mais de informação: a tetralogia de Padura, Quatro estações em Havana, deu origem a série de apenas quatro episódios: “Passado Perfeito”, “Ventos de Quaresma”, “Máscaras” e “Ventos de outono”. Título homônimo aos livros que foram lançados em português, pela Boitempo. Neles, o detetive Mario Conde, brilhante investigador, desvenda crimes em sua Cuba natal. Casos de corrupção, drogas, filicídios, traições, abusos de poder, intolerâncias diversas. Enfim, situações que permeiam nossa realidade. Dividido entre sua carreira policial e o sonho de ser escritor – coisa que faz melhor quando está apaixonado, mas que destrói quando se desilude, Mario Conde é nosso anfitrião nesta apresentação da cidade e das pessoas com as quais trabalha, a quem aprendeu a respeitar e, principalmente, seus amigos da adolescência que representam toda uma geração.



Interpretado pelo excelente Jorge Perugorría (lembramos dele desde Morangos com chocolate ); pois teve que criar um personagem que o texto não descreve os traços físicos, somente suas atitudes. Mario Conde tem em seus três amigos e nos diálogos que eles sustentam, regados a rum e música de Creedence Clearwater Revival, um núcleo de análise histórica e afetiva dos sonhos e resoluções de pessoas que lidam com as circunstancias que lhes tocaram e as escolhas feitas ao longo da vida. Estudaram no mesmo colégio secundário e agora enfrentam a queda do muro de Berlim e as consequências para seu país. Já dissemos, Mario queria ser escritor, tornou-se detetive. A resolução virá no episódio Ventos de Outono onde ele deixará a polícia para dedicar-se à escrita. Não se trata de revelar segredo; uma vez que os livros antecedem as filmagens e porque o próprio Padura nos revelou isto em entrevistas e nos livros seguintes que testemunham a nova condição do personagem: escritor e investigador independente. Os encontros dos amigos acontecem na casa materna de um deles: ex-soldado, participante da guerra de Angola onde levou um tiro que o condenou à cadeira de rodas. Vive com a mãe, responsável por alimentar aqueles “quatro mosqueteiros” com o que há de melhor da cozinha caseira caribenha que se perguntam de onde ela tira criatividade e víveres para aquelas refeições. Temos também o médico da turma, aquele que supostamente se saiu melhor, pois conseguiu um diploma universitário. Curiosamente, é quem ao final lhes anuncia: vai tentar a sorte fora do país. Voltará apenas para visitá-los.



As reviravoltas da história são acompanhadas pela trilha sonora de Miguel Solás que além do rock da adolescência (“estes tipos cantam como negros”, no dizer de um dos amigos), insere os ritmos da ilha, os boleros, o jazz, a rumba e as vozes. As imagens e os sons nos interpelam misteriosamente: o amor pelas paisagens urbanas, mesmo decadentes, persiste, estejamos em Havana, Rio ou Porto Alegre. Disto podem testemunhar os habitantes e transeuntes do Bom Fim, Glória ou Cidade Baixa. Quanto ao dilema do personagem principal – entre um ofício e um sonho, podemos dizer: dilema atual. Dependendo da conjuntura, quem nunca pensou em ser outro, estar em outro lugar e não ter que passar pelos dissabores/sofrimentos de hoje? Como a série nos mostra e afirmou o roteirista/escritor: “temos que buscar sempre uma nova utopia”. Elas nascem a partir de nossa realidade e de nenhum outro lugar, acrescentaríamos.


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Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).


Sul 21

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