domingo, 6 de janeiro de 2019

Nós, o lixo marxista

Vladimir Safatle

É preciso calar quem não se contenta com a vida imposta pelo novo governo

Tomou posse o primeiro governo eleito de extrema direita do Brasil. Com ele, não há negociação alguma possível. Nem ele procura alguma forma de negociação com aqueles que não comungam com seus credos, que não louvam seus torturadores e que não acham que "é duro ser patrão no Brasil".



Não há razão alguma para se enganar e acreditar em certa normalidade: a lógica que irá imperar daqui para a frente é a da guerra. Pois isso não é um governo, é um ataque.



Já o discurso do sr. Jair Messias foi claro. Questões econômicas e sociais estiveram em segundo plano enquanto as duas palavras mais citadas foram "deus" e "ideologia". Deus estava lá, ao que parece, para nos livrar da "crise moral" por que passa a República brasileira.



Isso, diga-se de passagem, há de se conceder ao sr. Jair Messias: vivemos mesmo uma crise moral profunda. Ela está instalada no cerne do governo brasileiro.



Pois como justificar um governo cujo ministro da Justiça ganhou seu cargo como prêmio por ter colocado o candidato mais popular a presidente nas grades e pavimentado a estrada para a vitória de seu atual chefe?



Como descrever um governo que já nasce com ministros indiciados e um réu confesso que se escarnece da população brasileira ao afirmar "já ter se acertado com deus" a respeito de seus malfeitos?



Como descrever um presidente cujo motorista foi pego em operações financeiras absolutamente suspeitas e se negado duas vezes a comparecer à Justiça sem sequer ser objeto de condução coercitiva?



Mas o destaque evidente é mais nova luta do Estado brasileiro contra a "ideologia".



Enquanto uma de suas primeiras medidas governamentais foi diminuir o valor previsto do aumento do salário mínimo, mostrando assim seu desprezo pela sorte das classes economicamente mais vulneráveis, o sr. Jair Messias convocava seus acólitos à grande cruzada nacional para lutar contra o socialismo, retirar das escolas o lixo marxista e impedir que a bandeira brasileira seja pintada de vermelho.



Alguns podem achar tudo isso parte de um delírio que normalmente acomete leitores de Olavo de Carvalho. Mas gostaria de dizer que, de certa forma, o atual ocupante da Presidência tem razão.



Sua sobrevivência depende da luta contínua contra a única alternativa que nunca foi tentada neste país, que nunca se acomodou nem às regressões autoritárias que nos assolam nem aos arranjos populistas que marcaram nossa história.



Pois ninguém aqui tentou expropriar meios de produção para entregá-los à autogestão dos próprios trabalhadores, ninguém procurou desconstituir o Estado para passar suas atribuições a conselhos populares, aprofundando a democracia direta, nem levou ao extremo necessário a luta pelo igualitarismo econômico o social que permite a todos os sujeitos exercerem sua liberdade sem serem servos da miséria e da espoliação econômica.



Ou seja, a verdadeira latência da sociedade brasileira —que poderia emergir em situações de crise como esta— é um socialismo real e sem medo de dizer seu nome.



A sociedade brasileira tem o direito de conhecê-lo, de pensar a seu respeito, de tentar aquilo que nunca conheceu sequer a sombra. Ela tem direito de inventá-lo a partir da crítica e da autocrítica do passado.



Mas contra isso é necessário calar a todos que não se contentam com a vida tal como ela nos é imposta por essa associação macabra de militares, pastores, latifundiários, financistas, banqueiros, iluminados por deus, escroques que tomaram de assalto o governo e que sempre estiveram dando as cartas, de forma direta ou indireta.



Assim, quando Jair Messias fala que irá lutar contra o lixo marxista nas escolas, nas artes e nas universidades, entendam que essa luta será a mais importante de seu governo, a única condição de sua sobrevivência. Pois ele sabe de onde pode vir seu fim depois de ficar evidente o tipo de catástrofe econômica e social para a qual ele está nos levando.



Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.


Folha SP




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