Wagner Batista
Nos anos 1970, Celso Furtado, paraibano de Pombal, discorreu sobre carências. Sobre a profunda diferença que existe entre a falta de uma garrafa de vinho e um naco de pão numa mesa familiar. O decisivo em eleições não é o estomago dos que têm fome, mas o apetite insaciável dos pantagruéis que definem o cardápio político, a agenda do judiciário, as regras e o resultado do jogo de cartas marcadas..
Razão não depende de geografia
No imaginário nacional, o Nordeste segue como a terra que vota com o estômago
Fabiana Moraes
Somos um país de pobres que detesta a pobreza. Aprendemos que ela é abjeta e que em seu interior há pouca chance de dignidade. “Cara de pobre”, “coisa de pobre”, “pobreza pega”. O que é dito como brincadeira guarda seus enunciados de verdade. Logo, é comum soltar um “os pobres precisam parar de ter filhos”. Logo, “um país rico é um país sem pobreza”, como disse um dia uma propaganda governamental. Logo, os pobres deviam mesmo parar de votar. E onde mora a pobreza do Brasil? Naquele torrão distante e seco denominado Nordeste, a região cristalizada pelo tempo (e por novelas e comerciais e livros e quadros e filmes) como a responsável tanto por guardar as coloridas tradições de um Brasil profundo quanto a vergonha da fome e da incapacidade de reflexão.
Essa seara com 57,36 milhões de habitantes de todas as classes sociais está prestes a surgir novamente nas mídias carregando todas essas marcas: nas eleições das duas últimas décadas, o Nordeste foi o protagonista nas falas daqueles que vieram a público explicitar como votamos mal, como conduzimos o país ao abismo, como nossa baixa escolaridade e nossa barriga vazia nos têm feito prezar por nomes que levam todo o país ao caos. O tio do pastel, a estudante de direito (“nordestino nem é gente”, lembra?), o estilista branco cool e seu marido mais cool ainda, a senhora que lamenta não ir a uma passeata porque sua empregada faltou ao serviço: são várias as gerações e classes que olham para a região com desprezo – ou alguma condescendência.
Um primeiro tapa ao pé do ouvido: nossa ideia do que significa “esclarecimento” está morrendo por inanição. Um bom exemplo somos nós mesmos, país no qual as famílias mais abastadas (renda acima de 9,5 mil reais) e com curso superior completo (só 15% dos brasileiros possuem) preferem um candidato à Presidência que anuncia não compreender a economia brasileira, diz que conheceu um quilombola que pesa “sete arroubas” e celebra publicamente o estupro e a tortura. Nossa civilidade partida também pode ser aferida pelo fato de termos atualmente um grande número de pessoas acessando um mar de informação por meios virtuais (são 116 milhões de usuários de internet, segundo o IBGE) ao mesmo tempo que elegemos em 2014 o Congresso Nacional mais conservador desde o golpe militar de 1964. Mas, ainda assim, entendemos que são as pessoas “desinformadas”, pauperizadas e menos escolarizadas – no imaginário nacional, nordestinas – que possuem pouca capacidade para decisões objetivas, já que as suas escolhas são orientadas somente por necessidade.
Desconsideramos veementemente nossa incoerência porque estamos acostumados a não questionar aquilo que parece natural, mas é fundamentalmente construído: o mito do eleitor desinformado, que se vende por qualquer trocado e que mora, quase sempre, no Nordeste. Ele está em oposição ao voto consciente, racional. O voto de quem estudou, pensa globalmente e no país. Os outros, coitados, votam com, no máximo, a próxima feira da semana no horizonte.
Estudando a pobreza brasileira há mais de duas décadas, a socióloga Maria Eduarda da Mota Rocha percebe que, em nossa sociedade profundamente classista, há duas formas de vivência da política: uma é a real, a que importa, enquanto as outras são entendidas como alienadas e inconsequentes. “A desqualificação do voto dos pobres e de tudo o que lhes diz respeito é sintoma de uma incapacidade crônica de empatia de uma parte de nossas elites, que também vota segundo seus interesses, mas que aprendeu a traduzi-los em princípios abstratos muito bonitos, como liberdade, empreendedorismo, empregabilidade.”
Esse fenômeno é igualmente analisado pela cientista política Priscila Lapa, autora da tese Como Votou a Classe C nas Eleições Presidenciais Brasileiras de 2014?. Trazendo como exemplo um clássico que provavelmente surgirá nas redes sociais nas eleições de outubro, os programas de transferência de renda, ela pergunta: “Se o pobre vota para manter o Bolsa Família e o rico vota em determinado candidato para não ter sua riqueza taxada, qual a razão de acharmos que o último é mais racional que o primeiro?” É uma questão precisa e que aponta para o que ela chama de régua ideológica usada pela elite escolarizada para carimbar seu próprio voto, que seria desprovido de intenções particulares e dirigido a um bem comum nacional.
O que a pesquisadora sublinha é que todas as pessoas, com baixa, média ou alta escolaridade, levam nomes específicos até as urnas de acordo com a percepção do que está acontecendo tanto no miúdo do seu dia a dia quanto no cenário nacional. “Se entendo que minha vida mudou para melhor por conta de algum candidato, me oriento naturalmente por ele. Nesse sentido, o Nordeste foi a região brasileira que teve sem dúvidas a maior mudança socioeconômica no país nas últimas décadas. É natural, assim, que o voto aqui seja voltado a gestões da esquerda. É uma escolha racional, econômica e pragmática. A presença de Bolsonaro entre os mais ricos é também um desdobramento desse tipo de voto.” Sintetizando: para ambos, abastados ou enrascados, votar também é razão.
Um segundo tapa ao pé do ouvido: nos posicionamos contra a pobreza e suas mazelas, nos emocionamos com crianças à beira de esgotos, mas entendemos – mais uma vez – como natural a desigualdade social brasileira, que faz com que 50% dos 88,9 milhões de trabalhadores e trabalhadoras recebam por mês, em média, 15% menos que o salário mínimo. Não nos posicionamos igualmente sobre o fato de os que recebem mais ganharem 360 vezes acima do trabalhador com renda mais baixa. Em 2016, os quase 90 milhões de trabalhadores brasileiros geraram 255 bilhões de reais por mês. Desse montante, 43,4% acabaram concentrados nas mãos de apenas 10% da população.
Os números deixam claro: somos mais pobres do que nossas usuais classificações de renda nos permitem realmente ver, uma vez que carimbamos como classe média (57,1% da população) pessoas que deixaram o ensino fundamental no caminho, se alimentam com gordura hidrogenada e acessam as redes virtuais em celulares cujas prestações estão atrasadas. Gente que circula nos ônibus metropolitanos já lotados às seis da manhã para dar conta de longos deslocamentos até empresas que oferecem contratos temporários. Gente que vive nas zonas rurais e vê televisão a cabo por meio de ligações clandestinas. Gente que mora nas áreas ribeirinhas e convive com lixo no quintal.
Nossa pobreza tem muitas camadas, mas costumamos tratá-la de maneira homogênea. Essa operação não se dá à toa: ao pensar os pobres como massa, retiramos deles os seus rostos, suas questões, suas falas, suas existências – que são múltiplas e se distribuem nas periferias, centros, sertão. “Ao falarmos dos pobres, generalizando, nós os diluímos. O mesmo vale para a classe C e o nordestino. Não nos referimos, por exemplo, ao voto do trabalhador, que é um voto mais realista, de gente que está tentando se manter no Brasil de agora”, diz Priscila Lapa.
Assim, situar o “mau” voto nos nordestinos, nos “esfomeados do Bolsa Família” ou, enfim, na pobreza é uma estratégia também voltada para a desmobilização: se nos referimos aos pobres como universitários ou trabalhadores – ambulantes, manicures, lavradores, empregadas domésticas – damos uma cara a esse voto. Damos voz, corpo e, perceba, racionalidade. Esta última é, no final, a palavra em disputa: quem a detém consegue, em um jogo que é seu, mas é vendido como de todos, o poder de determinar quem são os outros – ou o pessoal da geral, aqueles que precisam continuar na plateia.
Fabiana Moraes
FABIANA MORAES (siga @fabi2moraes no Twitter)
Jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco. Autora de cinco livros, entre eles O Nascimento de Joicy (Arquipélago Editorial)
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